"Messiânico" e "empregador"

Por Mário Villas-Bôas da Rocha, para Coletiva.net - Especial Dia do Amigo

Devo muito a duas pessoas pelo que me ensinaram apenas conversando comigo. Uma delas é Jayme Copstein. Visitei-o na Santa Casa ao anoitecer de quinta-feira, 12 de janeiro de 2017, logo após reunião da Diretoria da Associação Riograndense de Imprensa. Fui levar-lhe o abraço dos colegas e a nossa certeza de que o conselheiro honorário da ARI iria prolongar por muito tempo a luta contra o câncer pulmonar.

Conversamos bastante até chegar nova visita e acho que era a filha de Tito Tajes, outro bom amigo já falecido. O jornalismo e a ARI foram os assuntos predominantes. Sobre esta, manifestei algumas preocupações que independem do esforço de todos os colaboradores (não remunerados!), pois eram e são estruturais, não apenas conjunturais. Copstein ouviu e sentenciou: "Mário, continuas messiânico".  Já me havia dito isto dois anos antes, sem uma ponta de elogio na adjetivação. Da primeira vez, passou batido. Na segunda, calou fundo.

Jayme Copstein morreu no dia seguinte. Simplesmente não acreditei. Tinha 89 anos e estava perfeitamente lúcido e vigoroso na véspera, embora se movimentasse com dificuldade para deixar a cama e dar um passo até a cadeira. Apenas uma frase dele, meio perdida, levou o semáforo do verde ao amarelo; uma pergunta objetiva talvez conduzisse ao vermelho, mas achei que não cabia.

Ficaram as lembranças de anos de convívio na Caldas Júnior, onde fui repórter no Prêmio Habitasul Revelação Literária por ele criado; no bar da ARI, sábados pela manhã e eventualmente nas quintas; no apartamento em Petrópolis, onde jogamos conversa fora e boas partidas de xadrez. Mas não adiantou o teu duplo alerta, Jayme. Acho que sigo messiânico...

A outra pessoa amiga eu a conheci na recém-criada Faculdade de Biblioteconomia e Comunicação da Ufrgs, lá longe no tempo quando os anos 1970 ainda usavam fraldas. Eram anos difíceis e desde bem antes. Anos que vinham sendo chamados como sendo do metal de número atômico 82, massa atômica 207,2, pertencente ao grupo 14 da tabela periódica. Eram anos em que galho de madeira sustentando uma ave significava instrumento para práticas hediondas que não foram punidas até hoje.

Pois o tempo passou. Acompanhei a trajetória dela, sempre marcada pelo profissionalismo, pela ética, pela amizade com colegas, pela adoção das lutas certas porque eram sempre em defesa dos oprimidos e oprimidas, de quem sofria estigmas provindos de imbecilidades alheias. De vez em quando nos encontrávamos em alguma cobertura, evento, premiação. Um dia, me disse: "Mário, não sei se já te agradeci pelo meu primeiro emprego."

Respondi direto que havia engano. Nunca a havia contratado. Nunca a recomendara para algum espaço profissional em órgão da imprensa. Foram conquistas dela. Então, tive a memória agradavelmente cutucada. Em sala de aula, na Faculdade, deram aviso de que havia bolsa-trabalho para quem precisasse. Olhei em torno e ninguém se manifestava. Aí, levantei e disse: "Eu não preciso, mas recomendo a colega Nelcira".  Tímida, menina negra em classe de brancos, morando fora de Porto Alegre, precisando, ela aceitou. Acho que passaram uns 46, 47 anos deste episódio que foi recuperado décadas depois. Estava explicado o tal do primeiro emprego.

O que Nelcira Nascimento ensinou a mim?  Que as pessoas marcam fundo aquilo que fazem por elas. Que o bom mesmo de ajudar alguém está no ato puro, não na expectativa de obter reconhecimento imediato, menos ainda como estratégia para pleitear reciprocidade no futuro.

Nelcira Nascimento e Jayme Copstein, amiga e amigo vitais neste dia de amizades.

Mário Villas-Bôas da Rocha é jornalista e professor

 

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