Mulheres no Jornalismo: Titulares dentro das quatro linhas

Por Débora de Oliveira, para Coletiva.net

"Com licença, preciso que tu saia do campo porque aqui só pode ficar quem trabalha e mulher aqui não tem nenhuma..."

"Quando te vi lá atrás do gol até fui ligar o rádio para ver se tu entendia alguma coisa mesmo de futebol..."

"Se eu te mandar escolher novela ou jogo tem certeza que tu não vai preferir a novela?"

"Tu sabe porque ele te deu essa informação, né? Porque quer te pegar..."

Lá se vão quase 20 anos que ouço frases que talvez tenham o objetivo de me fazer desistir, mas só me impulsionam, motivam, servem de estímulo para eu seguir em frente.

Foi no dia 24 de maio de 1998 que estreei na minha primeira oportunidade profissional na área. Um concurso promovido pela Radio ABC, na época 1470 AM. Todas as meninas que se inscreveram para um programa de debates feminino de futebol tiveram que passar pela sabatina, em um produto já consagrado da emissora, que segue no ar até hoje, no 900 do dial. Detalhe: tinha que debater "de igual para igual" com os homens para se credenciar a uma das vagas. As quatro com melhor desempenho seriam as selecionadas.  Ou seja: não bastava conhecer futebol, gostar de futebol, estar qualificada com argumentos de enfrentamento... você precisava do aval do time masculino.

Esse seria meu primeiro encontro com quem era dono do lugar onde sempre sonhei estar. Me importei?! Nem me dei conta, na época. Uma menina. Sonhadora. Sequer tinha noção da responsabilidade que seria lidar com a paixão das pessoas. Quiçá que, para que isso se tornasse real, tivesse que ajudar a desbravar um caminho com tamanha falta de sensibilidade.

Pois foram minhas outras três companheiras de Fórum Feminino de Esportes quem mais me ensinaram a entender onde eu estava chegando, e o quanto ainda estava despreparada. Elas sabiam muito de futebol, tinham noção de técnica, tática, ambiental de vestiário, embasamento administrativo e emocional do universo esportivo. E eu era uma torcedora que vivia o jogo da arquibancada levada pelo meu pai desde sempre. Foi para alcançá-las que precisei mergulhar ainda mais fundo no conhecimento. Elas eram a certeza de que eu precisava ir além se quisesse sair do lugar. Nunca tive dúvidas do quanto elas estavam prontas para qualquer enfrentamento sobre futebol em uma mesa redonda.

Talvez por isso, desde o começo, não entendi direito que estava seguindo um caminho fechado futebol a dentro. Na minha família, no bairro onde eu morava, o futebol mobilizava famílias. Ninguém ficava em casa nos domingos de jogo. Todos se reuniam no alambrado torcendo e cantando, sem distinções.

Quando passei a integrar as jornadas esportivas da rádio, o ambiente era tão acolhedor, numa cidade onde todos se conheciam, que poucos avaliavam se tu estava indo bem ou não. Nos esperavam no clube como a pessoa querida que chegava, e não como a guria do esporte da rádio, ou como o narrador. Não havia diferença para a arquibancada.

Só fui entender o abismo quando cheguei na capital, em 2003. Na Band, fui a aposta, quem teve os primeiros contatos com a multidão de ouvintes e telespectadores, dando opinião em debate de TV com nomes consagrados, e lidando com a certeza absoluta da grande maioria que eu não deveria estar ali porque ali não era lugar para mulher.

Eram tantas mensagens, ligações para a emissora, cartas, palavras jogadas ao vento, como se eu fosse uma nada, em um ambiente que não era para mim. E eu pensava: sério que não tinha mulher? Sério que eles não vão me aceitar? O que eu fiz para essas pessoas que não conhecem nada das minhas lutas, batalhas e esforços de qualificação? Quem são eles para determinarem até onde eu vou? Fechei os olhos, respirei e fui em frente.

Um dia, entrevistando Ivo Wortman em um jogo do Juventude, perguntei a ele sobre apostar em um atleta tão jovem para começar a partida decisiva, se ele não sentiria a responsabilidade do jogo. Ivo me respondeu: "se eu o escolhi é porque acredito nele, ele também tem que acreditar". Levei essa frase para minha vida. Se a Band acreditou em mim, por que eu não vou acreditar? E me fui! Em meio aos colegas que eu só via na televisão, que tinha como referência, mas com quem jamais imaginava trabalhar junto. Menos ainda, ter as mesmas oportunidades. E acho que ALGUNS deles também não pensavam que tivessem "que passar por isso". Como se fosse um fardo me carregar pelas jornadas, viagens e programação. Foi muito difícil, e ainda é. Nesses 20 anos, nunca fiquei sem espaço no mercado. Nunca calaram meu jeito de fazer jornalismo esportivo. Minha relação de respeito com o público foi se fortalecendo conforme as pessoas foram me descobrindo como jornalista, e se identificando com meu jeito de narrar os fatos. Cada vez que vejo um sinal de descrédito com a mulher no ambiente esportivo, seja ele da torcida, do clube, ou da imprensa, penso: inseguros aqueles que precisam usar o preconceito como bengala pela própria falta de capacidade de êxito profissional. Infelizes os que precisam denegrir alguém para sentirem-se mais fortes e soberanos. Tolos aqueles que acham que nos diminuindo, nos calarão. Frustrante deve ser, para muitos, ver redações recheadas de boas profissionais, qualificadas, com embasamento teórico e prático do esporte, liderando equipes, tomando a frente de belos trabalhos jornalísticos.

Hoje, à frente do SBT Esporte, vejo nossa audiência corroborada pelo público feminino, que liga, participa, debate de casa com a gente. Na interatividade, na distribuição de presentes, no retorno de mídias sociais, eventos da emissora e até na audiência, o domínio é feminino: com percentual de 55%, contra 45% dos homens. Um programa de futebol para todos, sem disputa de gênero.

Eu não sou aquela que defende: "as mulheres podem", "as mulheres conseguem", "as mulheres entendem". Acho que quando tu precisa do enfrentamento para ocupar qualquer tipo de espaço, não será natural para as pessoas a igualdade. A igualdade deve ser o natural,  e não a batalha. Quem não aceita é que precisa brigar para mudar a si mesmo, pois é um derrotado nesse jogo. Mas tenho noção que essa não é uma realidade unânime e que esse ainda é um campeonato que não vencemos.

Nunca um golpe sequer diminuiu meu ritmo de driblar os adversários. E foram muitos, e não exclusivamente de homens. A mulher no jornalismo esportivo é a mulher de todas as áreas da vida: tem legitimidade para estar onde quiser, exercendo a profissão que quiser.

E quem achou que nos pararia, está onde hoje mesmo?! Na plateia. Assistindo a nossa consolidação, no lugar que escolhemos estar, e NÃO que pedimos favor para estar.

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