Sei que nada será como antes, amanhã

Por Márcia Martins

As pessoas são as responsáveis pelas escolhas que fazem nas suas vidas, profetizam os sábios, os profetas e os mais velhos e velhas. E as opções elencadas determinarão, claro que muitas vezes com a indispensável e necessária ajuda do senhor destino, o grau de intensidade dos dias e noites de cada um. Dependendo da alternativa, um dia pode ser totalmente monótono, ainda que composto de rotinas diferentes e inusitadas. Assim como, dependendo do caminho trilhado, um dia pode ser absolutamente empolgante, emocionante e arrebatador, mesmo que seja pontuado de atitudes iguais e com movimentos repetitivos.

Pois exatamente no dia 23 de janeiro de 2008, escolhi viver os meus dias e noites com muito entusiasmo, vibração e demonstrações imensuráveis de afeto e carinho. Nesta data, o cão shih tzu que ganhou o nome budista de Dalai entrou na minha rotina. Quem tem um cachorro sabe que os dias nunca serão iguais, que as chegadas em casa jamais serão tediosas, que as noites invariavelmente serão interrompidas por algum latido não se sabe o motivo, que ele é sim o melhor amigo do humano e que é o melhor e mais fiel cãopanheiro. A verdade incontestável é que um cachorro produz surpresas, novidades, reações diferentes e tornam os nossos dias e noites espetáculos à parte.

Mas, em 8 de novembro do ano passado, quando o Dalai morreu, às vésperas de completar 10 anos, vivi uns quatro meses de luto intenso. A dor da perda do neto canino era intercalada com os dias mais intensos da minha existência de tédio, monotonia, casa organizada, sofás sem pelos de cachorro que se colavam nas roupas e as deixavam com aparência de um tecido mesclado, portas das peças do apartamento escancaradas sem o temor da invasão de um cusco endoidecido. As noites insuportavelmente cruéis e sem nenhum sobressalto, sem sustos, sem a necessidade de deixar a luz do corredor acesa para iluminar o trajeto noturno do cachorro até o seu banheiro ou pote de água.

Foi um período de muita tristeza. Um tempo de muitas lágrimas. Meses de falta de ânimo, de iniciativa, de disposição. Evidente pela ausência do cusco mais amado e fofo deste planeta. Mas em parte pela rotina chata, enjoada, sem graça e entediante que invadiu a minha vida. Não tinha mais aquela recepção esfuziante de quem saiu há cinco minutos e parece que ficou um ano inteiro fora. Não tinha mais aquele ser cheio de emoção e entusiasmo seguindo os meus passos em todos os cantos da casa. Não tinha mais a surpresa de tropeçar no brinquedo do Dalai esquecido no meio do chão da sala. Não existia mais novidade, surpresa e empolgação nos meus dias e noites.

Decidi, então, que era o momento de colocar novamente intensidade e criatividade na minha rotina. Que eu precisava escolher mais uma vez um caminho empolgante, um rumo inusitado, uma situação arrebatadora. E adotamos (eu e minha filha) um novo cachorro, o cusco mais feio e ao mesmo tempo mais bonito que eu já conheci. Quincas Fernando Martins é um vira-lata especial, medonho, enlouquecedor, endiabrado e que devolveu à minha vida a dose necessária de surpresa, de emoção, de carinho e de afeto.

É possível escolher ter a casa sempre arrumada. É possível escolher ver os móveis sempre limpos e sem marcas de patas de cachorros. É possível escolher chegar no apartamento e não ser derrubada pelos pulos insanos do cusco esbanjando euforia pelo meu retorno ao lar. É possível escolher sair com as roupas bem alinhadas e sem os amassos do Quincas saltando de um lado ao outro sobre as mesmas. Mas, é muito melhor a bagunça, a sujeira pelo apartamento, os arranhões nos braços decorrentes das mordidas do cão filhote, as roupas amarrotadas e repletas de pelos. Eu escolhi ser feliz. Porque só assim eu sei que nada será como antes, amanhã.

*Coluna originalmente publicada em 12/09/2018.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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