O herói trágico

No início de 1919, o jovem Ernest Hemingway volta para Oak Park, no Illinois, para se recuperar dos ferimentos recebidos quando um morteiro atingiu …

EH 2723PNo início de 1919, o jovem Ernest Hemingway volta para Oak Park, no Illinois, para se recuperar dos ferimentos recebidos quando um morteiro atingiu a ambulância que ele dirigia no front italiano. Sua cidade natal o recebe como um herói e os jornais fazem a festa:

"Herói de 19 anos volta para casa com 227 ferimentos e procura emprego."

Convidado para falar em escolas e igrejas, exibe medalhas e a calça crivada de estilhaços. Os colegas de futebol o saudam com gritos de vitória e as crianças abanam à sua passagem. Mas o tédio não demora a chegar e Hemingway escreve ao amigo Dorman-Smith:

"Eles querem fazer de mim um herói de guerra, mas nós sabemos que os verdadeiros heróis estão mortos. Para ter sido um herói de verdade, eu deveria estar morto."
Assim que se recupera, viaja para o Canadá e, depois, embarca para Paris, imitando os outros jovens poetas e escritores de sua geração. Mas a primeira novela que escreve não se inspira na alegre vida dos bulevares parisienses, mas na traumática vivência de guerra e em questionamentos sobre heroismo e sacrifício. Em janeiro de 1929, dez anos e um dia depois de seu retorno à Oak Park, termina um de seus grandes livros, Adeus às Armas. Uma fala do protagonista Frederic Henry resume as emoções do ex-combatente:

"Quando se vai para a guerra, sente-se uma grande sensação  de imortalidade. Os outros podem morrer, não você?  Então, quando você é ferido pela primeira vez, todas as ilusões desaparecem e você sabe as coisas horríveis que podem acontecer contigo."

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As biografias e relatos sobre Ernest Hemingway são, quase sempre, centrados naqueles primeiros anos em Paris, quando ele convive com grandes artistas e escritores, como John dos Passos, James Joyce, F. Scott Fitzgerald, Erza Pound e Gertrude Stein. Publica seus primeiros romances e conhece o doce sabor da fama e da notoriedade. Por outro lado, em The Young Hemingway, o biógrafo Michael Reynolds relata os anos de juventude do escritor e as experiências que marcaram fortemente sua obra e suas atitudes. Ele tenta responder à pergunta: "O que fez de Hemingway o personagem público em que ele se tornou e quais os traços auto-biográficos identificados em suas novelas?".
As primeiras influências vêm de suas raízes, uma família de classe média, no interior de Illinois. A cidade de Oak Park era tranquila e conservadora, tanto em política como religião e moral. Ao contrário de seus contemporâneos Thomas Wolfe e James Joyce, Hemingway não escreve sobre sua cidade natal, mas foi para lá que voltou depois da guerra. Seu pai insistia que ele seguisse a profissão de médico, mas o jovem Hemingway sonhava em escrever e o emprego de repórter do Kansas City Star foi um primeiro passo.
Impressionado com a figura de Theodore Roosevelt e seu credo
"Uma vida aventureira forja o caráter", ao ser rejeitado para o serviço militar, se alista na Cruz Vermelha como motorista. Ferido gravemente quando distribuia chocolates para as tropas, em seu retorno a Oak Park forja para si o perfil de herói perfeito, como um tenente do exército italiano que lutou em três batalhas. Começava ali a construção de uma persona aventureira e rude, mas na verdade, a fantasia tinha fundo de verdade - mesmo ferido, ele ajudou a salvar alguns colegas, o que lhe valeu a medalha de prata por bravura, do Exército Italiano.

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Mas não foram somente os ferimentos recebidos na Itália que o traumatizaram. Enquanto se recupera em um hospital em Milão, se apaixona por Agnes von Kurowsky Stanfield, uma enfermeira sete anos mais velha. Eles decidem se casar mas, quando chega em casa, Hemingway recebe uma carta dela comunicando que ficou noiva e vai casar com um oficial italiano.
Segundo o biógrafo Michael Reynolds, o episódio marca de forma profunda o adolescente Hemingway, que, em Adeus às Armas, evocaria Agnes na personagem de Catherine Barkley, a enfermeira inglesa que se apaixona pelo herói do livro. A rejeição amorosa o faz desenvolver um comportamento vingativo em relação às mulheres - sempre encontrará um motivo para abandoná-las antes que elas o façam. Ficção ou verdade, as esposas e amantes que atravessaram seu caminho guardaram lembranças mais amargas do que doces
Quando conhece em Chicago a bela Hadley Richardson, uma ruiva oito anos mais velha e com forte instinto maternal, ele acredita ter encontrado a substituta da enfermeira perdida. Esbanjando auto-confiança, comenta:

" - Esta é a garota com quem vou me casar."
Realmente, eles se casam em setembro de 1921 e viajam para Paris, ele como correspondente estrangeiro do Toronto Star. Tudo parece correr às mil maravilhas; com Hadley alcança o que sonhara ter com Agnes: uma linda e carinhosa esposa, um bom emprego e uma vida na romântica Paris. Estava em curso o destino que faria de Ernest Hemingway um ganhador do Prêmio Nobel, um grande criador da literatura moderna e figura controvertida, aclamada e invejada.

Mas seus biógrafos continuam com seu olhar crítico sobre o homem que frequentemente se comportava como um de seus brutais e rudes personagens. Como acontece em 1922, quando Hadley, a caminho de encontrá-lo em Genéve, perde uma valise na Gare de Lyon com os manuscritos de O Sol também se Levanta. Eles brigam e ele, furioso, reescreve a novela desde o início. Que, quando publicada, é recebida com aplausos e elogios da crítica.
Um ano depois, ele abandona Hadley.
Os anos tardios do escritor foram descritos por A. E. Hotchner, na biografia Papa Hemingway, publicada em 1961, cinco anos após o suicídio. O livro retrata seus últimos anos, quando, com a saúde deteriorada, não consegue mais escrever. O autor recolheu algumas citações, dolorosas revelações da tragédia Hemingway.
Como a que diz:

" - Não existe um assunto para se escrever. Tudo o que você tem que fazer é sentar diante de uma folha de papel e sangrar."

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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