O Simenon siciliano

"Montalbano ficou comovido. Aquilo era a verdadeira amizade siciliana, baseada em intuição, naquilo que não foi dito. Ao amigo de verdade, não se precisa …

sem título"Montalbano ficou comovido. Aquilo era a verdadeira

amizade siciliana, baseada em intuição, naquilo que não foi dito.

Ao amigo de verdade, não se precisa perguntar, pois o outro compreende por si mesmo."

(Andrea Camilleri, "O Ladrão de merendas")

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Este siciliano de quase 90 anos é um dos mais populares autores da Itália na atualidade. Antes de escrever novelas, Andrea Calogero Camilleri trabalhou em teatro, dirigindo Luigi Pirandello e Samuel Beckett. Na RAI, dirigiu uma série de episódios com Gino Cervi no papel do Comissário Jules Maigret. Ninguém sabe ao certo, mas pode ter se iniciado ali sua grande admiração pelo personagem de Georges Simenon. O fato é que, 20 anos mais tarde, ele escreve a primeira de uma série de novelas policiais, protagonizadas por sua versão mediterrânea de Jules Maigret. O sucesso foi imediato e perdura até hoje.

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Como se sabe, Georges Simenon ambienta as aventuras de seu herói nas ruas e bistrots de Paris, com ocasionais incursões ao interior, à Bélgica e aos Estados Unidos. Já Salvo Montalbano, o herói de Andrea Camilleri, é comissário de polícia na fictícia cidade de Vigàta, na província igualmente fictícia de Montelusa, no rústico litoral da verdadeira Sicilia.
Pela velocidade em que escreve, Camilleri logo atingirá a marca  das 75 estórias que Simenon escreveu sobre Maigret. Mas não conseguirá alcançar a incrível produção do autor belga, que escreveu 192 romances, 158 novelas, obras autobiográficas, artigos, reportagens e outros 176 romances, novelas, contos e textos sob 27 pseudônimos diferentes, incluindo relatos auto-biográficos.
Mas foram as aventuras com uma das grandes figuras da literatura policial, o rabugento Jules Maigret, que lhe deram fama mundial e recordes de venda. Enquanto Simenon sempre foi um refinado mestre na descrição dos cenários e ambientes, embora contido na formulação dos personagens, Camilleri esbanja um cinismo explícito ao colocar em cena políticos, burocratas, rufiões e gente da máfia. Mas, no entanto, economiza palavras quando descreve a desolada paisagem em que vive Salvo Montalbano.

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As comparações tornam-se inevitáveis. Enquanto o comissário parisiense mora com a pacata e doce Louise Maigret, em seu apartamento burguês no Boulevard Richard Lenoir, Montalbano é solteiro, promíscuo e vive em uma pequena casa à beira-mar, em Marinella. Ali reina a sombra da invisível Adelina. Eles nunca se encontram, mas, quando de bom humor, ela sempre deixa na geladeira um belo jantar para o patrão.
Alguns autores costumam projetar sua glutonice nos personagens. Georges Simenon era um gourmet e Jules Maigret segue o mesmo caminho - adora o Cassoulet de Mme. Maigret e peixes preparados à moda da Normandia.
Aparentemente, Camilleri se filia à mesma escola - seu alter ego devora os salmonetes fritos ou o Spaghetti alle Vongole de Adelina, que encontra quando chega em casa à noite. Maigret bebe cervejas alsacianas e não dispensa um bom Calvados, enquanto acende seu décimo cachimbo do dia. Já Montalbano bebe vinhos sicilianos ou um eventual JB, enquanto fuma seus cigarros à beira-mar.
Maigret não liga muito para sobremesas, a não ser a tentadora Tartes aux Pommes de Madame Maigret (ou o licor de ameixas da cunhada). Quanto a Salvo Montalbano, não abdica de uma cassatta de frutas cristalizadas ou dos famosos Cannoli sicilianos.

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Andrea Camilleri nasceu em Porto Empedocle, mas vive em Roma, não longe da sede da RAI, onde trabalhou por longos anos. Não por coincidência, a emissora que produziu há pouco a série Montalbano para a TV. Retransmitida pela BBC, a série fez sucesso, rendendo a Camilleri o International Dagger, o cobiçado troféu da Associação Inglesa de Escritores de Crime. Em seu apartamento de Roma, ele vive entre montanhas de livros, ao lado de cinzeiros repletos de bitacas de cigarros - algo nada aconselhável para um homem de 90 anos.
Um repórter inglês que o entrevistava, identificou entre os volumes empilhados pelo chão e poltronas nomes que dizem muito sobre o escritor: James Joyce, Luigi Pirandello, o também siciliano Leonardo Sciascia e, claro, Georges Simenon. Ele explicou ao repórter que aqueles eram seus "autores eletrecistas" - quando estava com pilhas descarregadas, lia algumas páginas e logo recobrava a energia para continuar a escrever.
O escritor apanha um livro com as peças de Pirandello e conta que em sua cidade há uma estátua do ganhador do Nobel de 1934. E que, recentemente, a prefeitura decidiu colocar na mesma praça uma estátua de seu Comissário Montalbano. Ele acha graça na homenagem, diz que a estátua de Pirandello tem um dedo em ponta, como se fosse um revólver, apontando para o local onde plantaram a nova estátua. Com uma risada rouca, garante que Pirandello pergunta:

" - O que Montalbano está fazendo aqui?" 
O corrosivo humor siciliano de Camilleri não se restringe a livros e estátuas. Se diz incomodado com a glamourização que o cinema faz da máfia, como na trilogia The Godfather. Ele, ao contrário, é duro e implacável com os mafiosos ao retratá-los em suas novelas.
Quando o repórter pergunta se não teme a reação dos gangsters, Camilleri responde que a máfia não se interessa por literatura - sua preocupação é com a TV e os jornais.
E acrescenta, apontando o dedo para o repórter:

" - A máfia manda matar jornalistas, não novelistas."
 

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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