Três sustos

O verniz social é uma película invisível. Levou séculos para ser criada. Tênue capa a cobrir o primitivo na humanidade. Agora, como na camada …

O verniz social é uma película invisível. Levou séculos para ser criada. Tênue capa a cobrir o primitivo na humanidade. Agora, como na camada de ozônio, surgem cada vez mais evidentes horrendos buracos na civilidade. Nada mais nos protege uns dos outros. Assustador.
Um pequeno susto

Taxistas recebem aulas de atropelamento de motoboys em seu caminho e de agressão a mulheres motoristas no trânsito. Assusta imaginar que o verniz social descasca assim, descaradamente. Taxistas sem freios, dispostos a mostrar que trogloditas também têm direito a habilitação. Desvernizados por si próprios, incentivados por terceiros a se aproveitar de passageiros, e capazes de absorver instruções antissociais sem questionar. Mais assustadores que esses taxistas, só os instrutores, credenciados a piorar os riscos nas ruas. No Senit, na semana passada, o verniz social perdeu mais uma camada. Medonho.
Um grande susto

Copiloto derruba de propósito Airbus com 150 passageiros. Assustadora novidade no ar: qualquer um pode conduzir um voo pra Cucuia, região para onde segue tudo que não se consegue proteger. Agora, entre nós, uma nova categoria de tragédia, aquela sem motivo aparente - a não ser um, secreto, do cara que pirou com o manche nas mãos. O verniz social desfeito de um instante para outro. Inédita doidice no catálogo das doideiras da sociedade. Um insuspeito comportamento suicida, controlado durante 630 horas de voo, apenas.  Um minuto a mais e o verniz foi-se. Algo detectável ou indetectável no recrutamento e seleção de futuras tripulações? Impossível saber. Pavoroso.
O maior dos sustos

Comissão de Ética de um dos mais conceituados hospitais de Porto Alegre pede demissão coletiva. O visível verniz de poucos a contrastar com o verniz desaparecido em tantos da direção. O mais assustador, nesse caso, não é o sabido, o afastamento indignado. São os motivos não divulgados. Atos e atitudes condenáveis no trato da saúde, com o que a comissão de ética não pôde compactuar. O verniz, aqui, tem tons morais. Sabe-se lá o que de antiético ocorre nesse hospital. E se a ética passa mal aí, como não passam os pacientes ou os profissionais respeitáveis? E qual a finura da camada do verniz social em hospitais sem comissão de ética? Terrível.



Nepotismo.

Uma árvore genealógica tenazmente

enraizada nos cofres públicos.




O Brasil exige que os acusados da Lava Jato

sejam investigados - doa a quem doer.

Só se essa investigação não for indolor.




A coleta de lixo na capital evoluiu muito:

antes o atraso era manual, agora é mecanizado.

Parabeniza pelos 243, Porto Alegre.




 

Casimiro de Abreu além da terceira idade 


cartum FRAGA localização
Oh! que amnésia que tenho do outrora da minha vida

a velhice perdida aparelhos não prolongam mais

Que vácuo, que limbo, naquelas tardes de terapia,

o assombro das enfermeiras debaixo dos meus ais.
Como repete ideias fixas essa quase inexistência

respira a alma por tubos, falha o olfato pra flor.

O mar, concha muda na mão; o céu, cinzenta ausência,

o mundo, vago vestígio; a vida, um único torpor.
Que tonteiras, que rol de sobrevida, que noites insones,

aquela eterna letargia, aquele intenso resfolegar.

Lençol bordado de manchas, colônia de coliformes,

sondas furando artérias, tomografias de par em par.
Oh, sentidos em dormência, só se sente as escaras.

um açucareiro nas veias, cloreto de sódio - a ruína.

Em vez de asilo tranquilo, essa CTI às escuras

nenhuma serenidade, senilidade somente - e angina.
Das biópsias aos diagnósticos, prognósticos e análises

desfibrilador ao peito, pés gelados, braços picados.

Ressonâncias de um lado, por outro hemodiálises,

aneurisma ou avc, e a sonolência do coma induzido.
Nas UTIs monitoradas não se colhem pitangas

nem há remota lembrança de uma vida saudável.

No teto bailam alucinações com mares e sangas:

o paciente terminal agora é paciente interminável.
Oh! Que amnésia que tenho do outrora da minha vida.
 


Destino, cada um tem o seu.

Mas aí vem uma tragédia aérea

e junta 150 num só.




Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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