Receita de mulher

Se o poetinha já profetizava, lá pelos idos de 1959, no poema Receita de Mulher, que beleza é fundamental, quem sou eu para discordar. …

Se o poetinha já profetizava, lá pelos idos de 1959, no poema Receita de Mulher, que beleza é fundamental, quem sou eu para discordar. Vininha será sempre um ser inquestionável. Por isso, as muito feias que me perdoem, assim como dediquem este perdão ao Vinícius de Moraes, que me deu a ideia, mas é preciso que haja qualquer coisa de flor em tudo isso, qualquer coisa de dança, qualquer coisa de haute couture em tudo isso. Pois no meu novo trabalho, um salão enorme, onde convivem mais de mil pessoas, divididas quase que igualmente entre os dois sexos, habitam homens muito bonitos e charmosos (ah, se eu não tivesse abandonado o jogo) e mulheres muito lindas, divinas, maravilhosas.
Mas esta coluna é dedicada às representantes do sexo feminino, que são loiras altas, ruivas de estatura média, morenas claras com roupas atraentes, negras de colocar qualquer carioca no chinelo, baixinhas de todos os tons de cabelos e com todos os tipos de sorrisos e de gargalhar. São mulheres de chamar a atenção até mesmo de pessoas do mesmo sexo pela sua perfeição, desinibição, desenvoltura no caminhar, um jeito especial de balançar os quadris, um enigmático sorriso em cada rosto.
Veja bem, caro leitor e leitora: é muito difícil mulher elogiar mulher. E nem é por medo de surgir qualquer dúvida em relação à sexualidade de quem está elogiando. Entendo que o principal problema de uma mulher elogiar outra mulher é simplesmente um sentimento mesquinho, vil, egoísta, que deveria ter sido banido há muito da humanidade. Refiro-me à inveja que anda solta e disparando nos vínculos afetivos e profissionais.  Esta emoção ruim e desprezível é capaz de terminar com qualquer relação, de detonar qualquer bom entendimento, de magoar qualquer ser de boa intenção e de impedir toda manifestação mais sincera, como uma mulher reconhecer a beleza em outra mulher. Então, muitas vezes não elogiamos outra mulher pela simples inveja, porque ela é mais alta do que nós, porque ela é mais desenvolta, porque ela tem o corpo mais esbelto, porque seu rebolado tem mais gingado, porque seu sorriso parece mais sincero e mil outros motivos.
Pois aqui no meu serviço, desde o primeiro dia, tem me chamado a atenção de forma especial uma colega, que é supervisora de outra equipe. Ela administra seus 12 funcionários com energia, mas com um sorriso largo que ilumina o seu rosto claro e sempre bem maquiado. Ela coordena o seu corpo funcional com autoridade, mas sempre esbanjando humildade. Mas não são seus atributos como gestora que me encantam. O que me cativa nela é a sua beleza plástica, a sua lindeza, a sua quase perfeição.
Nesta terça-feira, ela estava com uma saia preta justa, com uma fenda na parte de trás da roupa, e um comprimento acima de seus joelhos, sem ser vulgar. A moca bonita, que imagino não ter mais do que 1.70 m de altura, trajava uma blusa verde num tom incomum e se equilibrava sob um sapato fechado de cor preta com salto alto de mais de 9 centímetros. E a emoldurar seu rosto bem definido e de beleza rara, enriquecido por um nariz perfeito e reto, seus longos cabelos loiros, encaracolados, crespos ao natural, que ela costuma puxar para trás e arrematá-los com um prendedor na cabeça, bem acima da testa.
A tal mulher tem uma beleza que vale pelo conjunto da obra. Tudo nela fica bonito e parece ter sido feito sob medida. Fiquei pensando que aquele nariz só é perfeito nela, que o formato de rosto combina com o resto todo porque é dela, que a cor do cabelo, de um loiro natural, sem apresentar nenhum sinal de química, fica em destaque porque é dela, que as roupas vestem bem porque encobrem ou descobrem seu corpo. E aqueles cabelos encaracolados do cabelo tão aceitos plenamente pela criatura. Falo nos cabelos crespos porque é frequente que as mulheres nunca estejam satisfeitos com as suas madeixas. Quem tem lisas, faz de tudo para encrespá-las e quem tem crespas perde horas e horas a alisá-las. Ela exibe os seus fios soltos a cair sobre o ombro e enfeitar seu rosto.
Como disse Vininha no poema citado no início da coluna, é preciso que tudo seja belo, assim como os pés. Vinícius afirmou: "pés e mãos devem conter elementos góticos discretos". E foi justamente num dia de muito calor que eu descobri o defeito na tal mulher. Peço desde já desculpas porque eu ainda tenho alguns momentos de humana e senti uma pontada de inveja ao vê-la caminhar com serenidade e espontaneidade pelos corredores do salão. Ao olhar para o chão, observei os pés da mulher, feios, estranhos, grandes, desengonçados, saindo com os dedos disformes para fora da sandália. Meu Deus, os pés da mulher parecem um navio desencontrado.
Apesar de ser dona daqueles pés horríveis, desproporcionais, sem estética e não apropriados, ela continua sendo uma linda mulher, "e em sua incalculável perfeição constitui a coisa mais bela e mais perfeita de toda a criação inumerável". Talvez só exista uma mulher mais bonita do que ela. E não é a Branca de Neve. É minha filha Gabriela Trezzi.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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