Pela estrada afora

"A criança que fui chora na estrada. Deixei-a ali quando vim ser quem sou. Mas hoje, vendo que o que sou é nada, Quero …

J.A. Pela estrada a fora"A criança que fui chora na estrada.

Deixei-a ali quando vim ser quem sou.

Mas hoje, vendo que o que sou é nada,

Quero ir buscar quem fui onde ficou".

Fernando Pessoa

O motor V-8 roncava forte, em disparada pela estrada de terra, a caminho do Passo Grande, deixando nuvens de poeira em seu rastro. Mas os passageiros do Expresso Garcia não se importavam - tinham os olhos grudados na estrada à frente, esperando a hora de chegar. De quando em quando, uma parada estratégica em bolicho de beira-de-estrada. Os passageiros desciam, esticavam as pernas, fumavam um palheiro ou entravam no mato para fazer xixi. Enquanto isso, o motorista Telmo abria o capô do ônibus e completava a água do radiador fumegante.

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Me lembro bem do Telmo Garcia. Ele era o motorista que levava o ônibus verde de Porto Alegre até Camaquã. De lá, era a vez de seu pai, o Anibal Garcia, assumir o volante até Pelotas, enfrentando o pior trecho da estrada, cruzando por riachos, areais e fazendas de gado.
Os Garcias usavam vistosos bonés de motorista e tiravam gosto no que faziam. Nas paradas, abriam as portas, ajudavam mulheres e crianças a desembarcar, baixavam malas e sacos do teto do ônibus. Nas paradas mais demoradas, o Telmo enchia um balde no poço mais próximo para lavar o ônibus, mesmo sabendo dos muitos quilômetros de barro e poeira que tinha pela frente.
O Expresso Garcia foi pioneiro na linha de Porto Alegre e Pelotas, com paradas em Pedras Brancas, Tapes, Vila Vasconcelos e Camaquã. Era longa a viagem, mas havia um momento emocionante, que quebrava a monotonia - a travessia do Rio Guaíba em balsas remanescentes da II Guerra. No cais da Vila Assunção, todos os passageiros desciam, enquanto o Telmo acelerava lentamente na subida da rampa de embarque. Quando a balsa ficava carregada de caminhões, ônibus e dos Fords e Chevrolets, um sino indicava que os passageiros podiam subir a bordo. E lá se iam todos, disputando um lugar no convés, de onde se podia ver Porto Alegre se afastando. Então, a balsa aproava ao sul, enfrentando as ondas e o minuano que vinha da Lagoa dos Patos.

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Não saberia dizer quantas horas durava a viagem de Pedras Brancas até a Vila Vasconcelos. Embalado pelos solavancos, eu logo adormecia no ombro da mãe. E só acordava quando o ônibus atolava no barral da Coxilha do Guará. Os homens desciam para empurrar, ao mesmo tempo em que o Telmo acelerava o V8, respingando barro pra todo o lado. E sempre havia por perto um curioso, que largava da enxada e chegava para olhar a cena e assim garantir assunto para a roda de chimarrão.
Durante a viagem se ouvia retalhos de conversas de passageiros, companheiros de outras viagens, que gastavam o tempo falando de gado, pescarias ou causos de disputas de terras. Não raro baixavam o tom de voz para comentar da moça de família que fugira de casa na garupa de um aventureiro.
A conversa só cessava quando o Telmo engatava a primeira marcha para vencer a lomba da Vila Vasconcelos, anunciando o nome antigo:

"Chegando a Dores de Camaquã!"
Era uma parada demorada, com tempo de folga para se beber uma gasosa na venda da praça. Na vila morava muita gente da família e sempre encontrávamos uma tia ou prima à nossa espera, com uma encomenda nas mãos. Nunca fiquei sabendo o que havia naqueles misteriosos embrulhos, atados com capricho em imaculados panos brancos. Depois, não demorava muito, o Telmo Garcia disparava o arranque do V-8 e lá seguia o ônibus verde pela estrada afora? As tão sonhadas férias de verão estavam começando?

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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