Saudades da minha infância querida

Os momentos que antecedem a comemoração do Dia das Crianças rendem belas revelações de fisionomias nas redes sociais. É um tal de adulto postando …

Os momentos que antecedem a comemoração do Dia das Crianças rendem belas revelações de fisionomias nas redes sociais. É um tal de adulto postando fotos de quando era bebê, no primeiro dia de aula na creche ou no jardim, na festa do primeiro aniversário, na comunhão, no batizado, no parque, apresentando alguma peça de teatro e nas ocasiões mais diversas e nada relacionadas com as atividades atuais. O face book, principalmente, vira uma sucursal de comentários melosos e sempre elogiosos, ao analisar os retratos do passado. Oinnnnnnn é muito amor, muito carinho, muita belezura destes pequenos e pequenas que atualmente povoam o nosso mundinho adulto. Em alguns casos fica até estranho ver aquele colega carrancudo e de aparência hoje sombria ostentando uma chupeta e um babador de tricô amarelo. Ou o amigo confidente distribuindo um largo sorriso no passado, sem ter todos os dentes, um tanto banguela. Ou aquela amiga sempre espalhafatosa exibindo aos dois anos um vestido de prenda arrastando a bainha no chão.
Ao olhar as fotinhos dos nossos amiguinhos e amiguinhas quando eles e elas ainda nem imaginavam o que seriam quando crescessem e se transformassem em adultos, quando eles e elas ainda nem tinham ideia do futuro a ser desenhado em suas vidas e definitivamente mudar as suas aparências, parece que cada um retorna um pouco a sua infância. Tempos de pular amarelinha, de brincar de esconde-esconde, de polícia e ladrão, de trocar gibis, de jogar cinco-marias e bolinhas de gude, de bater figurinhas. Tempos de juntar moedinhas ou raspar o cofrinho para comprar um picolé no carrinho do sorveteiro que passava uma vez por dia na rua, de ir às festas de aniversário e se empanturrar de negrinho (quando o termo não era ainda politicamente incorreto para ser substituído por brigadeiro) e de pedir para a mãe do aniversariante ou da aniversariante ceder aquele balão azul lá no teto que era justamente o mais difícil de ser retirado.
Ver a amiga que é a Best friend forever nos dias presentes sendo retratada, aos quatro anos, com longas tranças morenas, arrematadas com laços de fitas vermelhas, é relembrar um pouco aquela época. Quando os pais e mães permitiam que seus pequenos e pequenas passassem as tardes nas casas dos amiguinhos e amiguinhas, porque não tinha turno inverso nas escolas e, geralmente, as mamães não trabalhavam fora ou tinham babás que cuidavam de vários pimpolhas e pimpolhos ao mesmo tempo. Encontrar um retrato do amigo fiel companheiro de todas as jornadas profissionais e militantes das causas sociais trajando uma bermuda e suspensórios é recordar um pouco das roupas de anos atrás. A minha mãe Mirthô, por exemplo, tinha uma mania insuportável de vestir os filhos com as mesmas roupas, variando apenas a cor dos blusões de lã que ela mesma tecia, das toucas ou dos casacos dos manos. E assim saiam faceiros a passear de par de vasos as manas Márcia e Sílvia e os manos Nando e Dedé.
 
Tanta foto de amiga nascida como eu, no século passado (ai, que horror) com meias três quartos, tanto retrato de amigo com a mesma idade que o meu sobrinho mais velho lá em 1980 e muitos, com cabelos de hippie, tanta imagem de amigas e amigos mais recentes revelando momentos da infância que dá uma doida de uma saudade de ser criança. De não ter preocupação. Nenhuma. Nem financeira, nem profissional, nem amorosa e nem de saúde. De não ter que entupir-se de remédios para as enxaquecas da rotina endoidecida de 2015. Aliás, de não precisar tomar medicamento nenhum. Nem para as dores de amor e de desamor. De fazer rodeios para tomar banho e deixar que a água do chuveiro ou banheira lavasse as mágoas pelo brinquedo que não se teve, pelo desenho animado que não se viu, pelo jogo de futebol que não se ganhou. Saudade de tanta criancice, de mandar embora toda caretice e de desprezar qualquer tipo de regra ou norma do mundo dos adultos.
 
A minha filha Gabriela decidiu entrar na onda das fotos de criancinha e tacou no seu face book um retrato que amo de paixão. Ela está muito linda, muito divina, muito esplendorosa, muito sapeca, muito tinhosa, muito mimosa, muito cut-cut. É uma recordação de um passeio de barco em Santa Catarina quando ela tinha uns sete anos e Gabriela está divertidamente engolindo uma fatia imensa de melancia, um naco da fruta quase maior do que ela. Claro que amo todas as fotos da minha filha, na maternidade, no berço, no primeiro banho, na creche, nos acantonamentos, nos piqueniques da escola, nas apresentações de balé, na formatura, e também fotos dela atuais, onde desponta uma mulher linda, glamourosa, de sedosos cabelos castanhos e olhos verdes. Mas não nego um carinho especial com a foto da Bibi (é o apelido dela) comendo uma melancia. Ela aparenta um ar de travessura, uma felicidade, um jeito de criança que, passados mais de 13 anos, arrisco que ela ainda carrega.
 
E com tanta lembrança do passado nos retratos dos amigos e amigas na infância, só me resta recordar dos versos de Casimiro de Abreu no poema Meus oito anos: "oh! que saudades que tenho da aurora da minha vida, da minha infância querida que os anos não trazem mais, que amor, que sonhos, que flores, naquelas tardes fagueiras, à sombra das bananeiras, debaixo dos laranjais? Oh! dias da minha infância! Oh! meu céu de primavera, que doce a vida não era, nessa risonha manhã, em vez das mágoas de agora, eu tinha nessas delícias, de minha mãe as carícias e beijos de minha irmã".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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