A vida é o dever para fazer em casa

Nos últimos quatro meses, quase tudo ocorre na minha vida no intervalo do almoço, quando vou ao supermercado, situado dentro do shopping ao lado …

Nos últimos quatro meses, quase tudo ocorre na minha vida no intervalo do almoço, quando vou ao supermercado, situado dentro do shopping ao lado do local onde trabalho. Não que eu seja consumista (longe de mim? até parece). Principalmente agora, sem salário fixo, equilibrando-me na incerteza de uma renda de autônoma. Mas a minha ida diária ao estabelecimento comercial não é para grandes gastos e sim para economia em larga escala. Ao comprar o lanche da tarde no supermercado, consigo redução nas despesas, na comparação com os produtos vendidos pelos ambulantes do entorno, e opto por uma dieta mais saudável, livre de industrializados e frituras. Numa destas visitas ao supermercado, encontrei o Papai Noel antecipadamente e na mesma loja descobri uma invasão endoidecida de panetones nas prateleiras, que já foram assunto desta coluna.
Pois, nesta última terça-feira, ao programar o pagamento simplório do lanche da tarde para 30 dias (sempre jogando com o cartão do banco), percebi atordoada que falta um mês, exatamente um mês, para o Natal. E o quê isto significa? O final do ano, o abuso no consumo de guloseimas no Natal e no Réveillon, férias escolares, praia e piscina para quem pode, engarrafamento na freeway, carnaval, deixar tudo para trás e planos ousados só a partir de março de 2016.
Com isso, lembrei-me do nosso querido Mario Quintana, no poema intitulado O Tempo, no qual ele comenta a efemeridade da rotina e diz que a vida é o dever que nós trouxemos para fazer em casa. "Quando se vê, já são seis horas, quando se vê já é sexta-feira, quando se vê já é Natal, quando se vê já terminou o ano, quando se vê já perdemos o amor da nossa vida, quando se vê passaram 50 anos" e, segundo o poeta, é tarde demais para ser reprovado. Foi o que senti ao me dar conta de que o tempo disparou em 2015. Nestes 36 dias que faltam para se encerrar o ano, estou com muita pressa como o coelho da Alice no País das Maravilhas porque é tarde, tarde, é tarde que arde, ai meu Deus, alô Deus, é tarde, tarde. Tenho apenas 36 dias ou cinco semanas antes de findar este ano para amar quem não amei, ser mais carinhosa com familiares, perdoar mais, exercer em doses maiores a generosidade, desculpar as pequenas falhas, não exigir tanto dos que me rodeiam. É pouco tempo para exercitar atos de vivência que nem sempre foram meus aliados até então.
Havia prometido procurar mais os amigos e amigas. Não queria mais distâncias doloridas que só tendem a aumentar quando o (a) amigo (a) não pode estar mais com a gente. Muito pela falta de dinheiro que impediu encontros mais frequentes e um pouco pela falta de planejamento, as muvucas foram escassas. Quem sabe em alguma festinha de final de ano, a gente possa trocar com eles e elas em vez de presentes, afetos e carinhos. Havia prometido ser menos dura e fiscalizadora das ações diárias da minha filha. Não queria mais tantos desencontros entre mãe e filha. Muito pela característica de não aceitar o erro a alheio e pouco pela falta de compreensão da Gabriela, falhei e por muitas vezes fui uma mãe repressora, chata e menos amiga que sempre critiquei em outras famílias. Havia prometido não esperar muito mais dos outros. Apenas o que eles realmente poderiam doar. Muito em função de expectativas falsas minhas e pouco pela falta de entrega das pessoas, volta e meia, sai novamente de relacionamentos com o sentimento amargo da decepção.
Ler mais. Ser calma. Paciente. Acalentar. Acarinhar. Aguardar os acontecimentos sem ansiedade. Apostar sempre naquilo que dependia somente de mim. Permitir sessões de música sozinha na sala e filmes antigos na televisão fechada. Enxergar amor nas pequenas entregas da vida e entender que estas doses do sentimento são atalhos para a felicidade. Tudo isto ficou a ser feito. Não consegui cumprir estas promessas, desejos, comprometimentos. Logo, mesmo que eu me apresse, será quase inviável quitar estes meus débitos nestes 36 dias espalhados em cinco semanas. A falta de tempo me assola, me apavora, me deixa preocupada. Não é bom entrar no ano novo com dívidas tão pessoais. Nem se pedisse a ajuda do coelho de Alice conseguiria saldar estas pendências.
Por isso, assim como já ensinou o poeta Quintana, se me fosse dado um dia, outra oportunidade, eu nem olhava o relógio. "Seguiria sempre em frente e iria jogando pelo caminho a casca dourada e inútil das horas. Seguraria o amor que está à minha frente e diria que eu o amo". Simples não é? Porque gostamos tanto de complicar? Ainda dá tempo. "Não deixe de fazer algo de que gosta devido à falta de tempo. Não deixe de ter pessoas ao seu lado por puro medo de ser feliz. A única falta que terá será a desse tempo que, infelizmente, nunca mais voltará".

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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