À moda de Simenon

"- A verdade nunca parece verdadeira.

Se contar uma história sem a enfeitar,

acharão inacreditável e artificial.

Se a enfeitar, será mais aceitável

do que a verdadeira."

Georges Sim.

O velho cavalheiro usava um casaco de verão, quase branco, meio fora-de-moda e um chapéu-de-palha. No alto, as torres de Notre-Dame se erguiam sob um céu sem nuvens, enquanto andorinhas disparavam entre as gárgulas de pedra. Uma longa fila de barcaças subia o Sena, puxadas por um rebocador que levava um atrevido galhardete branco e vermelho. Ao cruzar sob a Pont Neuf, o rebocador tocou sua sirene, como saudando o céu luminoso de Paris e fazendo revoar as pombas da Île Saint-Louis.

***

Uma brisa fraca sacudiu as folhas dos castanheiros, enquanto o velho de chapéu-de-palha caminhava lentamente ao longo das barracas dos bouquinistes alinhadas à margem do rio. Um estudante, que havia descido de um ônibus de turismo, registrava a cena através do visor de sua Leica. O grupo que se reunira na praça agora se dirigia para a Notre-Dame, seguindo as instruções de um homenzinho agitado que falava através de um megafone.

Os sons da manhã de verão cruzavam uma Paris imensa e calma, quase silenciosa, com seus feixes de luz, suas extensões de sombra nos lugares certos, seus sons próprios que penetravam no silêncio das ruas desertas. O livreiro vestido de preto terminou de arrumar suas gravuras e livros e voltou-se para o estudante da Leica que falava em um idioma que não reconheceu. Esboçou um largo gesto de desprezo para afastar o inoportuno, quando o cavalheiro de chapéu-de-palha e casaco-quase-branco se aproximou.

"- Bom dia, Joseph".

"- Bom dia, Monsieur Bouvet".

Eles pareciam se conhecer muito bem. O recém-chegado se queixou de um ataque de gripe que sentira quando estava no metrô. Suspirou, pois no verão, a gripe o incomodava bem mais do que no inverno. Ele era muito suscetível a resfriados que lhe causavam dores de cabeça. E ficava mortificado, quando seus bolsos ficavam cheios de lenços úmidos. Além disso, naquela manhã, ele sentia dores nas costas, talvez por ter dormido em má posição - ou foi um pouco de indigestão devido à ceia regada a beaujolais de ontem à noite?

"- Estou ficando velho", falou alto.

O livreiro então abriu um grande portfólio recheado de antigas gravuras coloridas, que ele guardara para seus clientes favoritos. Eram gravuras raras da Vieux Paris, difíceis de encontrar e muito disputadas pelos colecionadores. Apoiou o portfolio no parapeito de pedra e voltou-se para chamar Monsieur Bouvet, que assoava ruidosamente o nariz com um grande lenço vermelho.

***

E então, quando tudo estava no lugar certo, quando a luminosidade da manhã estava atingindo seu ponto quase intimidador, quando as andorinhas voavam entre as torres da Notre-Dame, o velho cavalheiro morreu sem uma palavra, sem um grito, sem uma contorção, sem ver   as belas gravuras coloridas. Ele deve ter morrido de pé, um cotovelo apoiado na borda de pedra, com um lampejo de espanto em seus olhos azuis. Apenas balançou e caiu no pavimento, arrastando junto o portfólio com as gravuras de Paris que se espalharam sobre ele. A mulher da barraca ao lado deixou cair a bola de lã do tricô que tinha no colo e levantou-se, gritando:

"- Monsieur Bouvet!".

***

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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