Boca Negra

"Não sei o que se amontoa em minhas lembranças. São coisas que um homem jamais deve confessar." (Ricardo Güiraldes, "Don Segundo Sombra") *** Eu …

"Não sei o que se amontoa

em minhas lembranças.

São coisas que um homem

jamais deve confessar."

(Ricardo Güiraldes, "Don Segundo Sombra")

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Eu não tinha ideia de que meu avô, aquela figura de claros olhos azuis, e poucas palavras fora um guerreiro nos entreveros da revolução de 23. Ele nunca tocava no assunto, pois os mais antigos acreditavam que, em respeito aos que morreram por causas perdidas, não se deve acordar velhos fantasmas. Mas, como sempre acontece, há pessoas que gostam de mexer em coisas do passado.

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Era o caso de um velho peão, um negro de cabelos brancos, que tinha muita vivência e gostava de narrar estórias de antigamente. Nas rodas de fogo, entretia seus ouvintes com causos que tinham um tanto de verdade e muito de invenção. Seu nome de batismo era Salustiano Saraiva, mas todos o conheciam como Salustiano Boca Negra - eu não entendia por quê, até ouvir os coisas que ele contava.

Diziam que bastavam alguns goles de canha para o Boca Negra falar sobre o que não devia nem precisava. Porém, todos gostavam dele, mesmo duvidando do que ouviam. E o que ele mais gostava de contar eram as façanhas de um grupo de maragatos, o Piquete 18, cuja missão era castigar os correntinos renegados que invadiam fazendas, abatendo bois e ovelhas para fazer churrasco. Os cavalarianos do 18 ficavam escondidos, tomando chimarrão, esperando até que os correntinos se empanturrassem de carne gorda. Então, no meio da noite, atacavam, sem alarido nem gritos de guerra, brandindo sabres e adagas. Pesados de tanto comer, os invasores não conseguiam montar nem correr.

Poucos escapavam, se jogando no rio gelado e nadando para o lado castelhano da fronteira.

Não conheci melhor contador de estórias do que o negro Salustiano.

Quando chegava ao clímax da narrativa, fazia uma pausa, tomava uns tantos goles, enquanto a gurizada esperava, arregalando os olhos e apurando o ouvido. Ele, então, arrematava com um final para assustar qualquer um.

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Um de seus finais de mais sucesso e que arrepiava os pelos na nuca era quando descrevia o local da batalha depois que os homens do Piquete 18 terminavam o serviço. Com voz rouca e pesada, contava:

" - Então, o sol nascia, mostrando um campo

vermelho do sangue misturado dos bois carneados

e dos homens sangrados."

Mas o pior vinha depois, quando um dos guris perguntava o que acontecia com os correntinos aprisionados ou feridos. Então, era a hora do Boca Negra protagonizar o melhor de seu ato: com um sorriso malévolo e olhos brilhando, passava devagar o polegar sob o queixo, da esquerda para a direita.

E quando chegava a nossa hora de ir para a cama, não havia um que não sentisse o suor frio descer pelas costas. Seriam os fantasmas dos correntinos degolados?

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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