Cinema em tempos de cólera

Por Roger Lerina

Na cartela de opções cinematográficas de Porto Alegre desta semana, um par de filmes de origens e pretensões bem distintas repartem um mesmo interesse pelo potencial devastador da violência humana latente: o norte-americano 'Acrimônia' (2018) e o brasileiro 'O Animal Cordial' (2017). No primeiro título - que é um sinônimo de severidade, sarcasmo, acerbidade, amargura, aspereza, crueldade -, o lado sombrio vem à tona gradativamente, a partir de uma construção de crescente tensão dramática; na produção nacional, os sentimentos vis e a perversidade sádica explodem já no início e permanecem dominando a tela até o final da projeção.

'Acrimônia' é escrito e dirigido por Tyler Perry, realizador cujas produções para cinema e televisão costumam ser estreladas por afro-americanos - o elenco do filme em cartaz na Capital é majoritariamente integrado por atores negros. A história é narrada por Melinda (Taraji P. Henson, de "Estrelas Além do Tempo"), mulher que parece ter chegado ao limite da sanidade mental com relação ao ex-marido e sua nova esposa, de quem se vê obrigada pela justiça a manter-se afastada por conta de suas insistentes perseguições. Forçada a procurar assistência psicológica, a personagem começa a contar para uma analista a origem desse relacionamento tubulento - desde quando conheceu na faculdade o futuro companheiro até a atualidade, afundada pelo ressentimento que não lhe permite superar o fim do casamento.

Melinda rememora como teria sido seduzida pela lábia do marido charmoso, mas preguiçoso (Antonio Madison na juventude, Lyriq Bent na maturidade), investindo nele não apenas seu amor e dedicação, mas também todo o seu dinheiro. À medida em que os flashbacks se sucedem, porém, o relato apresentado por Melinda descola-se cada vez mais frequentemente da realidade dos fatos, relativizando os papéis de vítima e vilão na trama e denunciando o desequilíbrio emocional da protagonista.

O jogo dúbio entre versão e fato consegue interessar e empurrar 'Acrimônia' para frente, mas só até certo ponto: as reviravoltas de telenovela acabam por comprometer o engajamento com o enredo, excessivamente melodramático, que culmina com um desfecho vingativo constrangedor, desleixado e inverossímil. Nem mesmo a convincente e passional interpretação de Taraji P. Henson salva 'Acrimônia' da artificialidade e da confusão de objetivos, ficando a meio caminho entre o drama psicológico e o suspense policial.

Se a produção hollywoodiana termina não se decidindo por onde seguir, 'O Animal Cordial', longa de estreia da realizadora Gabriela Amaral Almeida, não tem dúvidas do rumo a tomar: trata-se do primeiro slasher movie - subgênero de terror caracterizado, entre outras marcas, pelo uso de violência gráfica extrema - dirigido por uma mulher no Brasil. O filme deu a Murilo Benicio o prêmio de Melhor Ator no Festival Internacional de Cinema do Rio, em 2017, e os de atriz e direção para Luciana Paes e Gabriela Amaral Almeida, respectivamente, no Fantaspoa 2018.

A ação se passa em uma única noite em um restaurante de classe média alta em São Paulo, que é invadido, no fim do expediente, por dois ladrões armados (Humberto Carrão e Ariclenes Barroso). Inácio (Benício), o dono aparentemente pacato do estabelecimento, Sara (Luciana Paes), a fiel garçonete do restaurante, o cozinheiro Djair (Irandhir Santos) e um trio de clientes (Ernani Moraes, Jiddu Pinheiro e Camila Morgado) são rendidos pelos bandidos, que fecham o local e mantêm todos presos. O restaurante torna-se então palco dos mais diferentes embates entre os vários personagens, choques atravessados pela especificidade da cultura brasileira: empregados x patrão, ricos x pobres, homens x mulheres, brancos x negros. Confrontos que podem ser sintetizados no antagonismo entre civilização e barbárie, concepções que se enfrentam na claustrofobia de um espaço confinado - uma panela de pressão para egoísmos e instintos animalescos e primitivos.

'O Animal Cordial' foi produzido pela RT Features, do brasileiro Rodrigo Teixeira - produtor de sucesso internacional que já bancou outros títulos de horror como 'A Bruxa' (2015), de Robert Eggers, e 'Quando Eu Era Vivo' (2014), de Marco Dutra. Esses títulos fazem parte de uma nova onda mundial de produção no terror, que evita envolver a plateia com sustos fáceis e truques clichês. São filmes mais complexos, com diretores que dialogam com o cinema de arte e que buscam também trazer reflexões sociais - caso, entre tantos outros, de 'Corra!' (2017), que rendeu ao diretor Jordan Peele o Oscar de melhor roteiro original deste ano.

Gabriela Amaral Almeida explora altas ideias e baixos sentimentos em 'O Animal Cordial', saindo-se melhor do que 'Acrimônia' em sua investida no hibridismo de registros cinematográficos. No entanto, a insistência em determinado tipo de situações e imagens violentas, tributário dos 'giallo' italianos rodados por diretores como Dario Argento, acaba por comprometer os voos mais ambiciosos de 'O Animal Cordial', podando-lhe as asas e conformando-o às regras do gênero.

Assista ao trailer de 'Acrimônia':

 

Assista ao trailer de 'O Animal Cordial':

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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