De perto ninguém é normal

Por Flávio Dutra

A interceptação de conversas privadas das mais altas autoridades do País leva a duas conclusões, uma alarmante e outra positiva. A alarmante: nunca foi tão fácil hackear quem quer que seja. Quatro chinelões grampearam mais de mil pessoas, do presidente e sua família a membros do Congresso e do Judiciário. A positiva: a divulgação de conversas hackeadas transformou o Brasil num país transparente por excelência. Sabe-se de todos e de tudo na República, onde de tédio não se morre.

Um dos meus interlocutores nas caminhadas pelo calçadão de Ipanema enxerga neste segundo aspecto o grande mérito da ação - criminosa, é importante que se frise - dos meliantes envolvidos no caso e atualmente presos na Policia Federal. Entende ele que a população tem todo o direito de saber o que pensam e como agem as autoridades, inclusive e principalmente as do mais alto escalão da República.

No caso do presidente Bolsonaro entendo eu que isso é absolutamente irrelevante. O que pensa, quais suas intenções, suas idas e vindas nas decisões, de quem gosta e a quem rejeita, é expresso claramente pelo presidente nos seus pronunciamentos e nas frequentes postagens nas redes sociais. Mais transparência impossível. E que evolução para o País. Estou sendo irônico, esclareço.

Outro interlocutor eventual no calçadão, figura de grande projeção no meio jurídico e, por isso mesmo, com alto potencial de hackeamento, ao ser provocado sobre a interceptação de mensagens de autoridades, afetou tranquilidade. "Comigo ficariam frustrados com o resultado", respondeu. Entretanto, o provocador acha que este argumento reforça a posição que defende intransigentemente: se os conteúdos dos vazamentos não são reveladores de questões escabrosas, não deveriam ser também motivos para queixas e ameaças de censura. Se não há o que esconder, não há do que reclamar.

Sei, não. "De perto ninguém é normal", canta Caetano Veloso e essa é uma verdade até para os ministros do STF, certamente em polvorosa a essa altura com a informação de que parte da corte teria sido alvo da quadrilha. Já eu estou de boa, embora me sentindo discriminado e cidadão de segunda classe por ter sido solenemente ignorado pelo quarteto ou seus asseclas. Mais de mil hackeados e eu continuo invicto, como postei no Face. Pensando bem, melhor assim. Imagina se vazam conversas menos civilizadas - mas fora do contexto, como é comum alegar - com alguma caldável, o que vou ter que dar explicações! Me deixem fora dessa.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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