O Abismo - uma entrevista
Desde o seu descobrimento, o Brasil e o Abismo mantêm uma longeva relação. Segundo observadores nativos e internacionais, o clima varia conforme as situações de aproximação e afastamento. A oscilação é grande: vai da histeria ruidosa a uma silenciosa deprê.
Por ser difícil rotular o que de fato rola há séculos entre eles - atração ridícula? flerte tragicômico? afeição platônica? cordialidade diplomática? -, o Instituto Nacional de Suposições e Hipóteses (INSH) foi conferir direto com o Sr. Abismo na periferia de Cucuia, onde tem residência fixa.
Como a região é inacessível, a entrevista foi realizada através de perguntas atiradas nas suas profundezas e respostas devolvidas por súbitas rajadas de vento. Houve certo desperdício de papel, mas valeu a pena. O povo não pode mais continuar à beira da ignorância.
INSH - O senhor pode ser sincero e objetivo sobre esse convívio instável com o Brasil? Por gentileza, nada de respostas superficiais.
Abismo - Não é do meu feitio ser raso. Não seria abissal, incoerência com minha natureza. E vocês, nada de zoom para meu âmago.
INSH - Há quanto tempo existe essa proximidade entre vocês?
Abismo - Desde antes de ele surgir no horizonte. Aquela calmaria era meu disfarce, espiava de longe.
INSH - Mas por que virou sina?
Abismo - Poderia dizer como diria Suassuna: não sei, só se foi que foi assim. Embora entre nós seja apenas uma fronteira metafísica como qualquer outra.
INSH - Como tem sido esses séculos entre vocês?
Abismo - Eu, sempre à espreita. O Brasil, nem imagino. O primeiro sinal é lá em cima na borda, o pezinho do Chuí.
INSH - Fale das circunstância de cada vez. Ou pelo menos da impressão que fica, já que o País nunca chegou aos seus braços.
Abismo - Para evitar processos, melhor responder com duas citações. Os brasileiros reconhecerão: 1) Ele é ele e suas circunstâncias. 2) Quando se olha muito tempo para um abismo, o abismo olha para você.
INSH - O senhor lê filosofia?!
Abismo - Vocês não vão acreditar a quantidade de filósofos que circula aqui embaixo.
INSH - E os economistas do Brasil, o que pensam do senhor?
Abismo - A economia, diferentemente da filosofia, é algo arrogante. Eles me olham e não me veem. Devem ter a mesma temperatura de peixes abissais.
INSH - Não se assustam com seus números refletidos no fundo?
Abismo - Um dia, um abismo entre gerações, ao passear numa universidade, reparou que os dicionários de economês não incluem a palavra medo. Daí a ausência também de susto e correlatas. Esse guri me contou.
INSH - E os políticos, como o senhor os observa?
Abismo - A maioria é sócio-contribuinte dessas profundidades todas. Cavam com os buracos, com entusiasmo. Geralmente buracos para seus adversários, suas oposições. Enormes, gigantes, descomunais. Talvez uma mútua missão. Sei lá.
INSH - Qual foi a maior área que o senhor já viu ser aprofundada aqui?
Abismo - Esqueça todas. Agora mesmo surgiu um projeto assustador: setores retrógados da sociedade, e com retroescavadeiras, manifestam o desejo de me instalar no território nacional.
INSH - A partir de que ano isso?!
Abismo - Desde agosto de 2016. Vocês esqueceram? Dava vertigem na população só de me olhar do alto. Quase tive a coisa também. Perder o sossego por um país é de doer.
INSH - E como é que o senhor e o Brasil estão agora?
Abismo - Ambos apenas abismados. Por enquanto.