O velho

Duas horas antes de começar o jogo, o Maracanã já estava cheio. O Flamengo iria decidir o Campeonato Brasileiro com o Internacional e a torcida chegara cedo, certa de que o título seria conquistado naquela tarde.

Na semana anterior, o Flamengo ganhara do Inter por 1 a zero em Porto Alegre e agora jogava pelo empate. Se perdesse, pelo mesmo placar, ainda teria direito a uma prorrogação. Além disso, Antônio Carlos e Zezé, os dois melhores jogadores do Inter, expulsos em Porto Alegre, não jogariam. O Inter armara um time de emergência e os jogadores foram instruídos a jogar na defesa para evitar um vexame.

Até mesmo Valtão fora convocado para ir ao Rio. Ele não jogara nenhuma partida do Brasileirão. Há muito tempo ele era um 'come-e-dorme' no clube. Nunca tinha sido um craque, mas todos os técnicos acabavam por aproveitá-lo no time, até a chegada de Nelson Dias que não lhe deu nenhuma chance no campeonato.

- O futebol é para jogadores polivalentes e o Valtão é um atacante que só joga na área e nesta função ele já não tem mais condições físicas ideais.

Valtão era chamado de O Velho pelos seus companheiros de time. Aos 35 anos, ele estava conformado com a sua breve aposentadoria como boleiro. Sua esperança era terminar o contrato com o Inter e conseguir um lugar como treinador nas divisões inferiores. O presidente lhe prometera um lugar há alguns meses atrás, mas ultimamente não queria falar mais no assunto.

Quando viu seu nome relacionado para viajar para o Rio, levou um susto.

- É só para compor o banco, Nelson Dias explicou aos jornalistas que também ficaram surpresos com a informação.

Agora, sentado no banco de reservas ele via um estádio vestido totalmente de vermelho e negro. O jogo começara há 15 minutos e só Flamengo atacava. O sufoco era enorme. Romualdo já havia chutado uma bola na trave, Preto defendera uns três chutes que os repórteres atrás do gol classificaram como impossíveis e Lúcio salvara de cabeça na linha do gol.

O silêncio no túnel do Inter era total. A qualquer momento o Flamengo marcaria o seu gol. O tempo, porém, ia passando e o gol não saia. A partir dos 30 minutos, o Inter conseguiu equilibrar a partida e o primeiro tempo terminou em zero.

No intervalo, o treinador fez um discurso emocionado no vestiário. Era preciso resistir de qualquer jeito. Quando tomasse a bola, o time deveria jogar na frente para o Ernani, que partiria em velocidade pela esquerda e cruzaria para chegada de Anderson pelo meio. Esta era a única jogada prevista pelo técnico. O Flamengo vai aumentar o sufoco. Todo mundo fica marcando. Só sobra o Ernani para iniciar o contra-ataque. Quando ele pegar na bola, o Anderson se manda pra frente.

Quando o Inter subiu para o gramado, o Flamengo já estava lá. O jogo recomeçou e o Flamengo se mandou todo pra frente. Ninguém queria saber de empate entre os cariocas. Até os 10 minutos, a bola não saíra ainda do campo do Inter. Aos 12, finalmente sobrou uma bola para o Ernani. Ele se lançou rápido a frente, como queria o treinador, mas foi parado no meio do campo por uma falta do Baiano.

Ernani ficou rolando no campo, mas ninguém levou muito a sério. Os jogadores costumavam fazer esta encenação para jogar o juiz contra o adversário. Quando o massagista Bica, lá do meio do campo, fez o clássico sinal de troca em direção à casamata do Inter, uma sensação de desolação percorreu todo o banco. Lá se ia a única opção de ataque do Inter. Fernando entrou no lugar de Ernani com a instrução de reforçar a defesa.

- Quando der, chuta forte para o Anderson lá na frente.

Com todo o mundo na defesa, o Inter resistia. Aos 30 minutos, uma chuva fina começou a cair sobre o Maracanã. O Flamengo continuava atacando e o Inter defendendo.

Aos 38, Fabiano apanhou a bola do meio do campo e arriscou um chute em direção ao gol. A bola saiu alta e com pouca força. Cleber, o goleiro do Flamengo, estava adiantado, quase no risco da grande área e para apressar a volta da bola ao seu ataque, tentou matá-la no peito. Molhada pela chuva, ela escorregou pelo seu corpo, bateu no ombro e ganhou força suficiente para ir morrendo no fundo das redes.

O estádio emudeceu. Bastava o Inter resistir mais 7 minutos para o jogo ir para a prorrogação. Mal o Flamengo deu reinício ao jogo e Anderson estava no chão contorcendo-se em dores. Quando o carro-maca o retirou do campo, o médico foi logo avisando - "não dá mais pra ele".

- Valtão, vai lá e ajuda a segurar o jogo.

Quando ouviu o técnico falando, achou que havia um engano. Era mesmo para entrar?

- É tu mesmo. Vamos ver se toda a tua experiência serve pra alguma coisa. Vamos catimbar tudo que der.

Número 14 às costas, Valtão entrou para ser o único atacante do time. Cinco minutos depois, tocou na bola pela primeira vez. Recebeu de costas para o zagueiro, protegeu a bola com a perna esquerda e fez uma meia-volta para a direita. Quando tentou sair, a bola já tinha desaparecido do seu controle. O zagueiro a tinha tomado e partia com ela para o ataque. 

Alguns minutos mais e o jogo terminava. Os times nem sairam de campo. Treinadores, massagistas e médicos entraram para atender os jogadores estendidos pelo chão próximos à borda do gramado. Alguns recebiam massagens, outros eram abanados com grandes toalhas. Valtão, apesar de ter jogado poucos minutos, estava ofegante. O treinador parecia arrependido da escalação. Durante os 10 minutos de descanso, antes de começar a prorrogação, não lhe dirigiu nem uma vez a palavra.

O juiz chamou os jogadores para o meio do campo. Seriam mais 30 minutos. Se o empate persistisse, a decisão iria para os pênaltis. Isso era tudo que o Inter queria: levar os jogos para os pênaltis.

Eles não vão aguentar a pressão da torcida. O Preto é bom pegador de pênaltis e com sorte a gente pode ganhar.

Foi a última frase do treinador antes da bola começar a rolar novamente. O Flamengo estava todo em cima, querendo decidir logo o jogo. Aos cinco minutos, a trave já tinha salvado duas vezes o Inter. Mesmo assim, o primeiro tempo da prorrogação terminou empatado. Depois de trocarem de lado, o jogo recomeçou e o Flamengo continuou atacando.

Quando o jogo se aproximava do final, Lúcio deu um bico pra frente. No círculo central, Valtão teve dificuldades em controlar a bola no peito, mas mesmo assim conseguiu colocá-la no chão. Num primeiro momento, pensou em atrasar a bola para o Fernando, lembrando o que havia pedido o técnico:

- Vamos reter o jogo tudo que der - mas em seguida se deu conta que esta era a chance de sua vida.

 Entre ele e o gol do Flamengo, havia apenas um zagueiro e lá no fundo, o goleiro Cleber. O zagueiro já começara a se movimentar em sua direção e ele precisa agir rapidamente. Pelo canto do olho, percebeu que as peças começavam a se movimentar no campo. Os jogadores do Flamengo tratavam de recuar e os do Inter a avançar. Se não fosse rápido, não teria mais espaço. Jogou a bola para esquerda, uns três metros em sua frente e arrancou com todas as forças que ainda tinha, tentando se desviar do zagueiro, um negro forte de quase dois metros de altura que chegava resfolegando pela direita.

Na sua cabeça, Valtão viu antecipadamente, como se fosse um filme em fast-motion, tudo que tinha que fazer. Com o lado de fora do pé direito, ele deu um pequeno toque na bola, mudando a sua direção para dentro do campo. O zagueiro, que se jogara num carrinho, para pegar a bola, ou, no mínimo, as pernas de Valtão, passou deslizando a centímetros de sua frente, arrancando a grama do campo. Valtão tocou a bola para frente. Cleber havia saído do gol para diminuir o ângulo do chute e ele deveria tomar uma decisão rapidamente: ou chutava agora, buscando o canto direito, ou driblava o goleiro e ficava livre para entrar com bola e tudo.

Valtão inclinou o corpo para a esquerda, quase rezando para que o Cleber acompanhasse seu movimento e jogou a bola para a direita. Num piscar de olhos, estava totalmente livre. A enorme goleira aberta a sua frente. Bastava dar um toque na bola e o Inter seria campeão brasileiro com um gol seu na prorrogação. À noite, o seu gol estaria em todos os programas de televisão. Amanhã, seria capa dos jornais. Valtão, o herói do campeonato. A Diretoria iria querer renovar o seu contrato, certamente com um bom aumento de salário.

Ergueu a perna direita para o chute final, mas ela não chegou na bola. Alguém a agarrava com muita força.

Valtão forçou para se livrar, mas sentiu que estava caindo. A bola quase parada a sua frente. Um zagueiro do Flamengo entrou correndo e a chutou para longe. O Cleber ainda estava enrolado em sua perna, quando o juiz chegou, marcando pênalti e mostrando o cartão vermelho para o goleiro. Deitado no chão, Valtão se deu conta que não seria mais o herói do campeonato.

Fabiano iria bater o pênalti e se fizesse o gol, receberia todos os abraços.

(Esse conto faz parte do livro Meu Tipo Inesquecível e Outras Histórias Pouco Edificantes de Marino Boeira).

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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