Os estrangeiros em Hollywood

O glamour, a repercussão midiática e a efetiva relevância do Oscar levam boa parte do público à conclusão de que aqueles filmes finalistas ao prêmio são os melhores do ano. Essa dedução, obviamente, é, no mínimo, equivocada e reducionista. O que a cada edição a mais badalada premiação do cinema mundial apresenta como o filé das telas é meramente um recorte de qualidade discutível da produção comercial de filmes, em sua esmagadora maioria norte-americanos e anglófonos. Isso está longe de ser uma amostra confiável do melhor realizado em termos cinematográficos na temporada - ainda que haja eventualmente entre os concorrentes ao Oscar títulos de inegável excepcionalidade.

Esse refulgente encontro anual de astros e estrelas de Hollywood em noite de gala - a 90ª edição do Oscar está marcada para o próximo dia 4 de março - costuma eclipsar a presença de filmes estrangeiros na festa. Porém, mesmo que os holofotes não estejam ali exatamente para eles, longas e curtas, ficções, documentários e animações dos mais variados cantos do mundo ganham por causa do evento uma notável visibilidade planetária, que será decisiva em suas trajetórias comerciais e artísticas. Em 2018, a nata do Oscar novamente se encontra entre esses filmes - muitos já estreados ou em cartaz por aqui. Mesmo não sendo um título inesquecível, vale incluir na lista de estrangeiros de destaque deste ano o drama "Me Chame pelo Seu Nome", coprodução internacional dirigida pelo italiano Luca Guadagnino e que tem por trás o produtor brasileiro Rodrigo Teixeira, indicado a quatro estatuetas - incluindo melhor filme.

A gema da legião estrangeira no Oscar 2018 é "Visages Villages", filme da cineasta franco-belga Agnès Varda em parceria com o fotógrafo e muralista francês JR, que concorre como melhor documentário - e também em exibição na Capital. O novo trabalho da primeira-dama da nouvelle vague é uma obra-prima: ao lado do jovem artista visual, conhecido por fotografar e depois estampar nos muros e paredes das cidades imagens imensas em preto e branco de retratos ou partes do corpo de pessoas, a diretora de clássicos como "Cléo das 5 às 7" (1962) e "As Duas Faces da Felicidade" (1965) parte para uma viagem pelo interior da França repleta de calorosos encontros com gente comum. Como já demonstrara em docs envolventes tipo "Os Catadores e Eu" (2000) e "As Praias de Agnès" (2008), Varda apresenta em "Visages Villages" uma obra encantadoramente híbrida - mescla de diário de viagem, reportagem, ensaio e filme de autoindagação, cuja fluência narrativa, humanismo e empatia contagiam desde os primeiros instantes e colocam o espectador de imediato na intimidade dessa improvável dupla de andarilhos. Homenageada da última Mostra Internacional de Cinema de São Paulo, Agnès Varda, 89 anos, recebeu agora um Oscar honorário.

Outra pérola oscarizável deste ano em cartaz em Porto Alegre é "Com Amor, Van Gogh", impressionante animação que relembra a trajetória e a controversa morte de Vincent van Gogh (1853 - 1890) a partir de suas pinturas e dos personagens que as habitam. Primeiro longa-metragem feito totalmente em óleo sobre tela, a monumental produção contou com uma equipe de cerca de cem artistas, que recriaram em pintura os 62.450 frames filmados com atores de carne e osso. Coprodução entre Polônia, Reino Unido e EUA, o belíssimo filme levou o prêmio do público no Festival de Annecy - a principal mostra de animação do mundo.

Já na categoria especialmente dedicada aos forasteiros, a de filme estrangeiro, o Oscar reúne como de hábito um punhado de obras interessantes - que, por conta dessa indicação, em geral acabam chegando à cinelândia brasileira. Dos cinco finalistas, o chileno "Uma Mulher Fantástica" já passou pela Capital, o húngaro "Corpo e Alma" e o sueco "The Square: A Arte da Discórdia" seguem em cartaz e o libanês "O Insulto" deve estrear nesta quinta-feira. Falta apenas o elogiado russo "Sem Amor", de Andrey Zvyagintsev - diretor do igualmente notável "Leviatã" (2014). Como em "The Square", a questão do preconceito étnico, da imigração e da intolerância está no centro de "O Insulto": um desentendimento banal entre o morador de um edifício e um capataz de obras em Beirute ganha contornos de crise nacional por conta da teimosia da dupla e, especialmente, das circunstâncias políticas, ideológicas e religiosas que envolvem a querela. Sentindo-se ofendido pelo empreiteiro Yasser (Kamel El Basha), um refugiado palestino, o cristão libanês Tony (Adel Karam) exige um pedido desculpas; o trabalhador em situação ilegal, por sua vez, recusa retratar-se e também se considera ultrajado pelas palavras e atitudes de seu adversário. O caso então vai parar nos tribunais, trazendo à tona não apenas os ressentimentos e animosidades latentes dos dois protagonistas, mas de toda uma região do planeta engolfada em guerras e conflitos nunca totalmente apaziguados.

Alinhando-se à cartilha do drama de tribunal, que captura a atenção do espectador alternando momentos de suspense, catarse e surpresa, "O Insulto" não chega a arrebatar - mas é um bom exemplo da riqueza de temas e abordagens que o cinema pode nos proporcionar quando mudamos um pouco nosso cardápio e decidimos experimentar filmes produzidos fora do habitual circuito hollywoodiano.

Assista ao trailer de "Visages Villages":

Assista ao trailer de "Com Amor, Van Gogh":

Assista ao trailer de "O Insulto":

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

Comentários