Os sonhos de um ateu

Por Marino Boeira

O que somos? De onde viemos? Para onde vamos? Tentando ajudar as pessoas a responder a estas perguntas resolvei reunir numa só embalagem três contos que falam do que nos reserva o futuro. É o famoso 3 em 1.

Sonhando com o céu

Dizem que o sono é uma pequena morte. Pois, na noite passada, tive uma pequena morte bem interessante.

Por alguma falha processual, talvez pela falta de provas ou porque a tese de domínio do fato não tinha chegado lá ainda, eu passara na prova de admissibilidade e estava no Reino dos Céus, ainda que cumprindo estágio probatório.

E era exatamente como tinham nos contado: uma eterna primavera, anjos sobrevoando silenciosamente os espaços, uma música muito suave de fundo e um dolce far niente de causar inveja a general de pijama.

Vão perguntar se eu vi o Grande Chefe Barbudo e eu respondo que não.

Disseram que tem hábitos parecidos com o Kin Jong-um, da Coréia do Norte, que não gosta de aparecer muito para os comuns dos mortais, mas falei com muitos dos seus assessores mais próximos.

Dessas conversas, fiquei sabendo muitas coisas sobre o que Ele pensa (vejam como fiquei respeitoso, usando a maiúscula no inicio do seu nome) e que agora me apresso a deixar registrado aqui nesse espaço cultural.

Ele largou de mão a política, porque ficou muito ressentido com os homens, que não só não seguiram os ensinamentos do seu filho - que ele mandou à Terra para pregar o comunismo - como o mataram.

Ele não tem grandes preferências entre os países, mas dizem que gosta muito do Brasil (costuma brincar que é brasileiro) e tem uma certa bronca com os Estados Unidos.

Sobre o Moro, diz que ele não joga no seu time, mas naquele time 'lá debaixo'.

Não se mete em eleições, mas deixou transparecer, segundo seus assessores, que gostaria de ver o Lula de volta como presidente.

Outra coisa, que pela sua posição não pode confessar, mas seus assessores sabem, é que costuma influir nos resultados de alguns jogos de futebol e que ficou tão chateado com o seu presidente, que largou o Inter (seu time do coração) de mão, no ano passado.

Aproveitando minha curta presença no céu, quis saber por onde andavam alguns brasileiros ilustres, mas meus informantes disseram que era um tema que não podia ser comentado, ainda mais comigo, cuja presença definitiva no local, ainda estava sendo discutida. Garantiram, porém, que nenhum general da ditadura tinha recebido asilo no céu, nem políticos do PMDB, PP e PSDB, chegaram recentemente.

Ouvi, porém, sons que me fizeram pensar que tinha identificado alguns brasileiros. Por exemplo, ouvi um forte sotaque gaúcho que falava em 'interésses' e no capital espoliativo internacional. Não deu para ouvir bem, mas imagino também ter ouvido alguns pedaços de letras de música, que me deram a certeza de que a Elis, o Gonzagão e o Gonzaguinha e o Belchior andavam por lá.

Quando minha pequena morte estava quase se transformando em vida, pude ver de longe um grupo ouvindo atentamente às lições de quem parecia ser seu mestre. Espichando o olho, tive certeza que era o Karl Marx falando para um grupo, onde rapidamente vi o Lenin, o Trotsky, o Prestes, a Rosa Luxemburgo, o Gorender e, até mesmo, o Stalin, o que me pareceu estranho. Mas aquele bigodão não me deixou dúvidas. Só podia ser ele, porque o outro bigodudo que conheço é o Olívio e esse, felizmente, está vivo. O Gorbachov não andava por lá.

Bom, agora que estou acordado, só posso dar testemunho do que vi.

Se non è vero, è bene trovato.

Vivendo do Céu

Morri e, nessa condição, me dei conta exatamente do momento em que minha alma se despegou do corpo.

Quanto tempo levou?

Talvez minutos, horas, não sei.

Antes de mergulhar naquele longo túnel que me trouxe até este lugar sobre o qual pretendo falar um pouco, consegui ver que poucas pessoas choravam minha morte. Algumas lágrimas, aqui, um lamento ali e só.

Não haveria uma informação sobre minha morte na seção de necrológios dos jornais, mesmo sem retratinho, nem um voto de pesar na Câmara de Vereadores e o pior de tudo, não fariam, em minha homenagem, um minuto de silêncio em jogo do Inter no Beira Rio.

Saí da vida, incógnito, como quando entrei.

Por isso mesmo fiquei surpreso quando fui informado que podia passar direto para o céu. Duplamente surpreso, diga-se de passagem, porque existia um céu e porque eu seria um dos seus hóspedes.

E como é o Céu?

Não posso falar muito sobre isso porque tive de assinar um termo de confidencialidade, mas posso dizer que não é nenhuma Cancun, mas também não é uma Vila dos Papeleiros.

Sabendo valorizar certas coisas é até lugar bem interessante, embora também aqui não tenham chegado algumas conquistas sociais, até comuns na terra.

Por exemplo: jornadas de oito horas de trabalho, repouso remunerado e férias de 30 dias, nem pensar.

Nós, as almas (algumas ainda são chamadas de penadas), ficamos à disposição em tempo integral para cumprir missões que a elite celestial costuma determinar.

Aliás, a divisão de classes aqui é muito rígida. O chamado círculo de poder, que nunca se mistura, é formado por aqueles caras que foram citados na Bíblia.

Citações na Bíblia são consideradas essenciais para sonhar com alguma ascensão social por aqui. Ser lembrado no Novo Testamento conta pontos, mas não é a mesma coisa do que ter aparecido no Velho Testamento.

Ontem (ou foi no século passado?) fui informado de que devo voltar à Terra em breve, comprovando que era verdade aquela história do Sérgio sobre reencarnações.

Não sei o que serei. Você não tem muitas opções: bicho ou ser humano, homem ou mulher. Eu vi que tinha uma vaga para um desses cachorrinhos de madame, tratados a pão de ló, mas um argentino (tem alguns aqui, mas poucos) se adiantou e pegou o lugar.

Escolhi uma vaga de homem, mas parece que é para viver como líder do tráfico numa vila popular de Gravataí, sinal de que não vou durar muito por ai, mas quando acabar, certamente dessa vez vou sair em algum jornal, obviamente na página policial.

Aguardem novas notícias minhas em breve.

Quando fui para o Céu como Papa

Todo mundo sabe que sou ateu e não acredito em nenhuma dessas histórias que contam a respeito de Deus, Diabo, Céu e Inferno e continuo pensando que fora da matéria não existe espírito, mas como uma pessoa formada em História (turma de 1965, da Ufrgs, na época, simplesmente Urgs) sou obrigado reconhecer a verdade dos fatos, mesmo quando eles possam contrariar a minha visão sobre eles.

Faço essa introdução para informar aos distintos leitores que, em outra encarnação (algo em que não acredito), fui Papa. Meu nome de batismo era Ambrogio Damiano Achille Ratti, nascido em 1857 e me tornei Papa em 1922, como nome de Pio XI.

Em 1929, assinei o famoso Tratado de Latrão com Benito Mussolini, o que trouxe duas vantagens: para Mussolini o reconhecimento da Itália como um estado fascista e para Igreja Católica uma base material e econômica, representada pelo Estado do Vaticano.

Morri em fevereiro de 1939 e como Papa, usando os direitos assegurados pelo meu cargo, fui direto para o Céu.

A partir daí, essa narração feita até aqui na primeira pessoa (eu) passa a ter um caráter impessoal para que possa ter mais credibilidade.

Chegado ao seu Céu, Pio XI se mostrou muito incomodado ao constatar que velhos comunistas, que ele sempre combatera, eram figuras reconhecidas por Deus pelas lutas que tiveram em favor da melhoria das condições das pessoas e gozavam de posições privilegiadas junto aos centros do poder celestial. Assim, Marx e Engels eram sempre consultados em questões econômicas, Rosa Luxemburgo era a pessoa mais ouvida quando se discutia os rumos do feminismo e Lenin era o grande estrategista nas lutas contra as hordas de Lúcifer.

Pio XI ficou tão incomodado com isso que, diariamente, pedia a Deus para voltar à Terra. Tanto insistiu que, quando ocorreu de haver um corpo ainda sem espírito (ou alma) em agosto de 1939, em Porto Alegre, concordou que Pio XI assumisse essa vaga.

A partir daqui, a narrativa volta à primeira pessoa porque vai tratar das minhas experiências.

O corpo era o meu e então durante alguns anos, sob o nome de Marino se escondia o Papa Pio XI, o que confesso agora, me trazia alguns constrangimentos.

Sendo naturalmente um ateu, me via participando de confissões e até comunhões, na Igreja São João.

Depois de me submeter a sessões de exorcismos, porque a igreja duvidava da minha origem mística, fui convencido que tudo era uma fantasia minha a partir de um encontro com o famoso Padre Quevedo, durante uma edição do Fantástico da Rede Globo, acho que na década de 1970, quando esse jesuíta espanhol se dedicava a desmistificar casos como o meu.

Desde então, pus de lado essa fantasia de ter sido Papa e pude assumir meu ateísmo, embora, às vezes, me pegue fazendo longas citações em latim.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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