Roman Polanski é um senhor cineasta

Um dos maiores prazeres cinéfilos é acompanhar como os grandes mestres relacionam-se com suas obsessões e temas recorrentes ao longo de sua carreira, ora reiterando o interesse por determinados tópicos e abordagens, outras vezes afastando-se deles - com maior ou menor distanciamento. Roman Polanski é um dos poucos cineastas em atividade cuja trajetória artisticamente consistente presta-se a esse exercício de maneira exemplar: cada novo filme com sua assinatura convida o espectador à análise não apenas da obra em exibição na tela, mas também da relação dessa produção com aquelas do mesmo realizador que a precederam - e, no extremo, com a própria história do cinema. 'Baseado em Fatos Reais', novo título de Polanski, traz à baila velhos e novos assuntos para a cinematografia desse criador que, diferentemente de colegas inclusive mais jovens, mantém-se inquieto e criativo aos 84 anos.

Adaptação do romance lançado em 2015 pela escritora francesa Delphine de Vigan, publicado no Brasil pela editora Intrínseca, 'Baseado em Fatos Reais' é um thriller psicológico - um dos gêneros prediletos do diretor de 'A Dança dos Vampiros' (1967), 'Chinatown' (1974) e 'O Pianista' (2002). A história mostra as consequências do encontro da escritora de sucesso Delphine (Emmanuelle Seigner, mulher de Polanski) e uma fã que lhe pede autógrafo em um de seus concorridos lançamentos, chamada Elle (Eva Green). Apesar do reconhecimento e da legião de admiradores de seus livros, Delphine está à beira do colapso: angustiada por um mal estar difuso que drena suas energias, a autora passa ainda por um bloqueio criativo que lhe impede de começar um novo romance. Elle ('Ela', em francês) percebe imediatamente o estado frágil da autora - que, por sua vez, sente-se atraída pela misteriosa personagem, muito diferente da protagonista: a mulher que aos poucos vai entrando na vida de Delphine esbanja autoconfiança, está sempre elegante, é sofisticada e dona de uma beleza magnética.

Essa incipiente amizade torna-se mais próxima e profissional quando Elle - que alega ser escritora fantasma de autobiografias encomendadas por personalidades da política e do entretenimento - oferece ajuda a Delphine em seu dia a dia. Enquanto Elle insiste com a escritora que seu próximo trabalho deve ser seu 'livro secreto', isto é, um relato inspirado em suas lembranças e segredos pessoais mais íntimos, Delphine sente-se cada vez mais perturbada com as cartas anônimas que recebe, acusando-a de explorar a figura da mãe e expor a família em suas ficções em troca da fama literária. Entre as duas mulheres cresce então uma relação de poder, fascínio e dependência - que inclui toques de sadomasoquismo e leve erotismo.

Polanski divide o roteiro de 'Baseado em Fatos Reais' com o francês Olivier Assayas, crítico de cinema que se tornou um aclamado diretor - e cujos filmes mais recentes, 'Acima das Nuvens' (2014) e 'Personal Shopper' (2016), também são protagonizados por personagens femininas. No longa atualmente em cartaz, o cineasta polonês volta à questão da personalidade fragmentada e do confronto com a própria sanidade, presente em praticamente toda sua filmografia - mas que merece particular atenção em produções como 'Repulsa ao Sexo' (1965), 'O Bebê de Rosemary' (1968) e 'O Inquilino' (1976). Já os dilemas e impasses do artista em crise, outra preocupação constante de Polanski, também estão em seus filmes anteriores do tipo 'O Último Portal' (1999), 'O Escritor Fantasma' (2010) e 'A Pele de Vênus' (2013). Por fim, o clima de perversidade sexual subjacente de 'Baseado em Fatos Reais' remete sem dúvida a 'Lua de Fel' (1992) e 'A Morte e a Donzela' (1994).

Para além das autorreferências, a relação entre as duas mulheres de Polanski dialoga ainda tanto com a complexidade psicológica do Ingmar Bergman de 'Persona' (1966) quanto com o suspense dramático de tintas policialescas do clássico 'A Malvada' (1950), de Joseph L. Mankiewicz, e de 'Mulher Solteira Procura' (1992), de Barbet Schroeder. 'Baseado em Fatos Reais' pode não estar entre os mais memoráveis filmes do cineasta - mas, mesmo quando não é brilhante, Roman Polanski mostra na tela inteligência e sensibilidade distantes anos-luz da mediocridade reinante no cinema comercial contemporâneo. Nada mal para um octogenário.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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