Spielberg não perde a ternura jamais

Gosto de Steven Spielberg por várias razões. Uma delas é a capacidade do diretor em fazer com que sua obra acompanhe sua maturidade artística e cronológica sem que precise para tanto abandonar por completo seu estilo e interesses de juventude, muito menos negá-los. Recentemente, o cineasta esteve em cartaz com "The Post: A Guerra Secreta" (2017), trama político-jornalística na melhor tradição do cinemão hollywoodiano, estrelada pela sempre ótima Meryl Streep e por Tom Hanks - um dos atores preferidos de Spielberg. Para contrabalançar essa versão mais dramática e, digamos, séria do diretor, entra em cartaz nesta quinta-feira "Jogador Nº 1", aventura juvenil que mostra como o realizador de clássicos do gênero do tipo "Os Caçadores da Arca Perdida" (1981) e "E.T. - O Extraterrestre" (1982) ainda é um bamba nesse riscado.

"Jogador Nº 1" é ambientado em 2045 - mas, em muitos aspectos, parece um filme dos anos 1980: da trilha sonora às citações de filmes, quadrinhos e games, passando ainda pela estética da direção de arte, tudo tem o sabor de nostalgia oitentista. Spielberg, porém, não sucumbe ao canto da sereia de aplicar um mero estelionato sentimental para tirar dinheiro do público saudosista: a abundância de referências à cultura pop em "Jogador Nº 1", além de confirmar seu olhar claramente amoroso sobre esse universo, vem sempre acompanhada de um pitada de autoironia, que serve de antídoto para aquele excesso autocongratulatório característico de certo culto ao nerdismo.

Em "Jogador Nº 1", o adolescente Wade Watts (Tye Sheridan, o Ciclope de "X-Men: Apocalipse"), como o resto da humanidade, prefere a realidade virtual do jogo OASIS ao mundo real futurista - degradado do ponto de vista social e ecológico e dominado por empresas poderosas. Quando morre o criador do jogo, o excêntrico programador James Halliday (Mark Rylance, Oscar de ator coadjuvante por "A Ponte dos Espiões", também de Spielberg), os participantes são instigados a descobrir a chave de um quebra-cabeça praticamente indecifrável a fim de receber sua fortuna inestimável. O esperto Wade, que circula no mundo virtual como um avatar chamado Parzival, também entra no páreo, enfrentando outros concorrentes e uma legião de jogadores a serviço do ambicioso industrial Sorrento (Ben Mendelsohn), disposto a qualquer coisa para colocar a mão no legado do visionário Halliday. Para chegar na frente do vilão na disputa, que se desenrola tanto dentro do megagame quanto na vida de verdade, Wade/Parzival contará com ajuda de um grupo de jovens amigos, interpretados por Olivia Cooke - interesse amoroso do mocinho -, Lena Waithe, Win Morisaki e Philip Zhao.

"Jogador Nº 1" mistura animação computadorizada com atores de carne e osso. A viagem cinematográfica de Spielberg está recheada de "easter eggs" - aquelas surpresas escondidas em jogos eletrônicos e DVDs que fazem a delícia dos geeks: como se estivesse respondendo a um quiz sobre cultura pop, o espectador se vê engolfado por uma divertida enxurrada de dicas e informações que desafiam seu conhecimento sobre o tema. Bandas como A-Ha e Twisted Sister, os jurássicos games da Atari, os filmes "Alien: O Oitavo Passageiro" (1979) e "De Volta para o Futuro" (1985) - as alusões desfilam pela tela nas falas dos personagens e nas imagens mostradas, provocando o público a entrar na brincadeira de reconhecê-las à medida que se sucedem. Um dos melhores momentos de "Jogador Nº 1" é uma longa sequência relacionada ao antológico filme "O Iluminado" (1980), de Stanley Kubrick - cineasta de quem Spielberg é fã e do qual filmou seu projeto "A.I.: Inteligência Artificial" (2001).

Ainda que não explore os perigos do controle da sociedade por corporações tecnológicas com os tons sombrios e pessimistas de títulos célebres de ficção científica dos anos 1980 como "Blade Runner, o Caçador de Androides" (1982), "O Exterminador do Futuro" (1984) e "RoboCop - O Policial do Futuro" (1987), Spielberg consegue alertar com sensibilidade em "Jogador Nº 1": por mais divertida e inescapável que seja a vida 2.0 na internet e nas redes sociais, o olho no olho e o contato pessoal sempre serão imprescindíveis. É por causa de princípios simples como este que Steven Spielberg é um dos grandes herdeiros do cinema do mestre Frank Capra (1897 - 1991), diretor de filmes que nos ensinaram a admirar a fortaleza do sujeito comum como "O Galante Mr. Deeds" (1936), "A Mulher Faz o Homem" (1939) e "A Felicidade Não Se Compra" (1946).

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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