Digitais do Divino

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Antigas lendas toscanas contam que Michelangelo Buonarroti viajava frequentemente a Carrara para escolher os melhores blocos de mármore. Quando selecionava um no alto da montanha, os operários tentavam dissuadi-lo a escolher outro mais acessível e mais fácil de cortar. Ele insistia e esbravejava até conseguir o bloco indicado. Um mestre marmorista, exausto depois de horas cortando a rocha, questiona-lhe porque aquele bloco entre tantos. Resposta:

"- Existe uma madonna aprisionada dentro desta pedra. Devo libertá-la."

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O italiano Umberto Eco escreveu que enxergava digitais do Divino nas madonnas de Michelangelo Buonarroti, bem como nas sinfonias de Ludwig van Beethoven, no telescópio de Galileu Galilei e na cúpula do Duomo de Florença, de Filippo Brunelleschi. Ele registra aqui a mensagem espiritual produzida por homens do Renascimento Italiano, como Michelangelo, Giotto, Raffaelo, Da Vinci, Bernini e Brunelleschi.

Michelangelo Buonarroti tinha plena consciência de que muito de sua obra nascera graças às demandas de Julio II e dos Médicis de Florença. Não aceitava encomendas de outros países e não permitia que suas esculturas deixassem a Itália. Graças à sua teimosia, seus grandes mármores permaneceram em Roma, Florença e Milão, para o êxtase de milhões de turistas, mesmo por quem ignora o que foi o Renascimento. Mas houve uma exceção.

Após a morte do mestre em 1564, algumas de suas esculturas foram levadas para o Louvre de Paris e para o Hermitage, em Leningrado. Mais tarde, retornariam à Itália, mas uma deixou Roma para sempre, com o consentimento de Michelangelo. Ele cedeu aos apelos de dois mecenas flamengos, que queriam uma madonna para abençoar sua cidade. A Madonna com o Menino não figura entre as grandes peças do mestre florentino. Tem apenas 128 centímetros de altura e foi esculpida em 1504, logo após ele ter concluído a Pietà do Vaticano e o David de Florença, duas das mais celebradas esculturas do planeta.

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Quem chega a Bruges, na Bélgica, tem muito para ver. A cidade é conhecida pela arquitetura medieval preservada e pelo acervo de pinturas flamengas. No entanto, A Madonna com o Menino, na Notre Dame, por si só, justifica a viagem. Sua história é fascinante. Quando a esculpiu, Michelangelo tinha menos que 30 anos e estava no auge de sua fúria criativa. A figura da Virgem repete a Pietà de Roma - uma bela e jovem mulher, que segura a mão do Menino, como que tentando evitar que ele se afaste. Mas ela não sorri, pois pressente que o Menino não mais lhe pertencia.

Foi a beleza desta obra prima que cativou os irmãos Jan e Alexander Mouscron. Em 1506, eles levam a escultura para Bruges, apesar dos protestos do papa Piccolomini, que pretendia instalá-la na catedral de Siena. A história continua - 300 anos mais tarde, tropas de Napoleão Bonaparte invadem a Bélgica e saqueiam as obras de arte que encontram, inclusive a pequena madonna. Com a derrota dos franceses, a escultura volta para casa. Mas não por muito tempo.

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Em setembro de 1944, a Wehrmacht, em retirada da Bélgica, tem ordens do Marechal Hermann Göering para confiscar pinturas dos mestres flamengos e a escultura de Michelangelo.

Mais tarde, em maio de 1945, a Alemanha está cercada e a II Guerra Mundial está no fim. Nos Alpes da Áustria, um grupo de elite do III Exército norte-americano penetra na mina de sal de Altausee. O que suas lanternas revelam é assombroso: uma caverna atulhada com milhares de quadros, esculturas, tapeçarias e objetos de arte saqueados dos grandes museus da França e Bélgica e das coleções particulares de famílias judias, deportadas ou mortas.                      Ali, finalmente, o Capitão Robert Posey encontra o tesouro que caçava há meses - a Madonna com o Menino. Usando um precário elevador dos mineiros, os Monument Men trazem a Madonna de volta à luz do dia. Dois anos depois, ela é devolvida a Bruges.

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Quem visitar a Notre Dame vai encontrá-la em seu nicho de mármore negro, ladeada por estátuas representando a Fé e a Esperança. Para os flamengos de Bruges, a pequena madonna é a eterna protetora da cidade.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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