Adolfo Gerchmann: A fotografia impregnada

Para Adolfo Gerchmann, os atos simples são os mais gratificantes: para quem faz e para quem recebe

Adolfo Gerchmann | Crédito: Rafael Serpa Gerchmann
Somente amigos privilegiados sabem que na condução de um dos restaurantes mais respeitados de Porto Alegre, o Orquestra de Panelas, está, na verdade, alguém que, antes de qualquer coisa, orgulha-se de ser fotógrafo. E fotógrafo também dos mais respeitados, embora há tempos afastado do dia a dia desta profissão. Adolfo Gerchmann trabalhou em jornais diários e na sucursal da revista Veja em seus melhores - melhores dela, revista - momentos, e hoje dedica boa parte de suas atenções ao restaurante, mas não deixa de revelar, em cada gesto ou suspiro, que a fotografia está impregnada nele.
Nascido em Porto Alegre, em 30 de maio de 1953, o filho de Bernardo Gerchmann e Clara W. Gerchmann, ambos de origem judia, lembra que a geração dos seus pais era guiada pelo medo da perseguição. Morava no bairro Bom Fim, próximo à Rua Ramiro Barcelos, onde havia grande concentração de judeus e de negros. "Os excluídos moravam mais ou menos juntos", brinca. Seu pai, Bernardo, foi jogador de futebol, atleta do Sport Club Internacional na época do "Rolo Compressor". "Meu pai era reserva, dizia que não foi um grande jogador, mas só jogou com os melhores", relata.
A infância ficou marcada pelo futebol de calçada, pois o campo da região era reservado para os mais velhos. Além disso, não consegue esquecer o ritual de seu pai no fim da tarde de domingo. "Não consigo me desvencilhar do rádio. Lembro que ele ouvia o programa "Grande Rodeio Coringa", tomando chimarrão, e eu ficava ouvindo com ele." Lembra também de "seu Alfredo", que entregava pães no armazém de sua avó materna com uma caminhonete Ford:  "Eu nunca esqueci o nome do cara, e quando passava em casa ele me levava junto para entregar o restante das encomendas".
Estudou desde o jardim de infância no colégio Israelita e lá concluiu o ensino fundamental. Depois disso, fez o ensino médio no Colégio Rosário. Foi casado com a jornalista Angela Rahde, com quem teve a filha Suzana, que é advogada. Há 25 anos, está em união estável com Liese Serpa, socióloga por formação. Com ela, teve dois filhos: Arthur, que pretende estudar Cinema, e Rafael, estudante de Design.
Caminhada no Jornalismo
Quando foi para a faculdade, em 1970, Adolfo ingressou no curso de Administração de Empresas, na Unisinos, onde permaneceu durante três anos. Ia bem até que decidiu trocar para Jornalismo, ali mesmo, na Unisinos. Após um ano e meio na nova graduação, fez vestibular novamente e foi para a PUC, onde se formou em 1978. Através da indicação de um colega, começou seu primeiro estágio no fim de 1976, na Companhia Jornalística Caldas Júnior, que então editava três jornais: Correio do Povo, Folha da Tarde e Folha da Manhã. "Tive o prazer e a felicidade de trabalhar com o Marques Leonam que, como repórter, foi um dos grandes caras com quem eu convivi", relembra. "A conduta dele foi sempre muito digna. Na redação ele tinha uma postura admirável. Era um cara ereto, digno, um cara que eu sempre admirei", completa. Depois de um ano estagiando, foi contratado na Caldas Júnior, onde atuou até 1982.
Nesta época, começou a fazer alguns trabalhos como freelancer para as revistas Manchete e Placar. A partir destas experiências, foi contratado para trabalhar na sucursal gaúcha da revista Veja, onde ficou até 1988 até ser "convidado a se retirar". Depois disso, trabalhou mais alguns anos sem vínculo empregatício no projeto conhecido como Vejinha, uma publicação regional que circulava encartada com a revista Veja. Realizou diversos trabalhos para outras publicações da Editora Abril e para o Estadão, encerrando este ciclo em 1992.
Quando trabalhou na Veja, passou pela transformação da impressão em preto e branco para o processo a cores. Este foi um dos primeiros grandes desafios de sua carreira, pois a experiência de fotografar em preto e branco é totalmente diferente com a cor. "Acho que eu aprendi a essência do Jornalismo, mesmo, na Veja. O Jornalismo é uma coisa de equipe. Eu aprendi que a fotografia também precisa ter o início, o meio e o fim. Se o editor vai usar ou não o teu trabalho, é outra história, mas tu deve registrar tudo", enfatiza.
Naqueles anos em que transpirava redação, o ambiente estava sempre em ebulição, com o ruído repetitivo das máquinas de escrever e a movimentação de pessoas. São lembranças de um bom passado; atualmente, compartilha da ideia de Luis Fernando Verissimo sobre o teclado silencioso: "as redações silenciosas" de hoje têm outra relação com o fazer jornalístico, onde cada um fica em seu computador. Ou, como repete um colega jornalista, insistem em registrar tudo sobre a China e nada sobre a esquina. "Na minha concepção", lamenta Adolfo, "falta um olhar para a cidade, falta um olhar para o Estado, muitas coisas passam despercebidas".
Repórter Fotográfico ou Fotojornalista?
As grandes referências de Adolfo na fotografia são Pedro Martinelli e Nico Esteves. A fotografia, ensina ele, exige uma entrega de corpo e alma. "Tu tem que acreditar em ti e ir atrás, tem que registrar o momento de todos os jeitos possíveis", aconselha. A denominação defendida por ele para definir o profissional da área não é fotojornalista, e sim repórter fotográfico, pois acredita que o fotógrafo também está passando uma informação e tem que transmitir um olhar da situação.
A redemocratização do Uruguai e a primeira caminhada do Movimento dos Trabalhadores Rurais Sem Terra (MST) foram trabalhos extremamente marcantes na sua trajetória, realizados na Veja. Nestas coberturas, aprendeu que é necessário abstrair a emoção em relação ao fato, para entender e mostrar o que acontece, sem nenhum envolvimento, pois o juízo é do leitor. Na caminhada do MST, ele diz que foi intenso ver homens e mulheres com seus filhos naquela situação: ao chegar no conforto do hotel, chorou depois de revelar as fotos. Na redemocratização do Uruguai, lembra de um registro em especial: jovens e intelectuais, que haviam sido mandados embora do país, retornando com suas bandeiras, abraçando familiares e beijando o chão da sua terra.
Também tem lembranças do clima ainda ditatorial que pairava na primeira eleição uruguaia. A contagem dos votos foi no Estádio Centenário, em Montevidéu, que estava cercado por soldados do exército e canhões, lembrando uma praça de guerra. "Parecia um campo de concentração", diz. Outro registro que está na memória de Adolfo é o de sua primeira e única capa na Veja, retratando Luma de Oliveira. A ex-modelo havia ganho o título de Miss Playboy na China e já tinha presença confirmada em um baile de Carnaval de Porto Alegre. "Foi a única capa que eu fiz, e não foi feita em estúdio", lembra, sem esconder a satisfação pelo trabalho realizado.
Distanciamento da fotografia
Adolfo explica que a fotografia está impregnada nele e que, após quase 10 anos na revista Veja, passou por uma ruptura muito grande com o Jornalismo e com a própria foto. "Eu sempre disse: eu nunca tive amante, meu amante era meu equipamento", reforça. Quando saiu das redações, em 1992, descobriu através de um amigo que o Theatro São Pedro estava abrindo uma concorrência para exploração do café naquele espaço. Elaborou uma proposta com um viés cultural, tendo como parceiro um chefe de cozinha argentino, que desenvolveu a parte gastronômica. Eles ganharam. "De um dia pro outro, eu estava atrás do balcão e a máquina de fotografar estava em casa", desabafa.
Com o passar do tempo, algo seguia incomodando Adolfo, mas ele simplesmente não conseguia entender o que era aquilo, o que estava gerando tamanho desconforto. Quando a cidade de São Paulo completou 450 anos, o fotógrafo Fernando Bueno decidiu fotografá-la durante 24 horas no dia do aniversário, recrutou cerca de 50 fotógrafos e chamou Adolfo para fazer o making off do projeto. "E aí eu vi o que estava me incomodando: era não fotografar. Então voltei à ativa."
Atualmente, sem descuidar-se das exigências do restaurante que mantém com seu colega jornalista Mário de Santis, está se dedicando a um projeto com o também jornalista Renato Lemos Dalto. É sobre "Os Cantos de Cima da Serra", que ele considera uma natureza encantada, em uma região belíssima. "O objetivo é mostrar a natureza, o homem e como esse homem vive nesses lugares. No fim, é uma grande reportagem. E tá ficando bem legal. Acho que no final do ano fica pronto", conta. Ele diz que não se imagina em outra profissão, pois o profissional não é jornalista só quando está dentro de uma redação, é jornalista sempre.
Fora da redação
A vitória para explorar o café do Theatro São Pedro deu origem ao "Orquestra de Panelas". Uma das ações realizadas por ele neste período foi uma homenagem ao ilustre amigo Mario Quintana. O Theatro recebeu uma exposição de originais do escritor e, a partir disso, Adolfo decidiu incorporar um hábito que ele presenciou na época em que trabalhava na Caldas Júnior: "O Mario ia até o andar da cantina, pedia uma taça de café preto, um quindim e uma fatia de presunto. Na homenagem, nós fizemos um expresso, um quindim e, ao invés da fatia de presunto, um bilhete sobre a obra. E foi um sucesso", relata.
Após a experiência no Theatro, Adolfo participou de uma concorrência para trabalhar no Café dos Cataventos, da Casa de Cultura Mario Quintana, e ganhou. "Eu sempre acho que esses espaços têm que fazer coisas mais integradas com a cidade. Eu acho que Porto Alegre não tem uma integração com as pessoas, elas não fazem parte da cidade, falta uma relação mais próxima. Adoraria que tivesse mais isso, como conseguimos fazer no café da Casa de Cultura."
Além do Theatro São Pedro e da Casa de Cultura Mario Quintana, também gerenciou o café do Museu de Arte do Rio Grande do Sul. Nesta fase, começou a surgir a vontade de ter um estabelecimento na Rua Padre Chagas, mas não tinha o dinheiro necessário. Quando encontrou um lugar, levou o amigo Mario de Santis, que conheceu no Estadão e adora gastronomia, para saber o que ele achava. Mario disse que tinha recursos na poupança e poderia emprestá-los para Adolfo, que o convidou para ser parceiro no negócio. Assim, em 2001, começou a relação de confiança em uma sociedade que dura até hoje.
Nos dias de folga, Adolfo gosta de ir ao Mercado Público, cozinhar para amigos e beber vinho. Adora ler e admite que vai à Livraria Saraiva no mínimo duas vezes por semana, mesmo que não vá comprar nada, apenas para dar uma olhada.  Considera-se um cara atento que procura estar no seu tempo, não vive no passado, mas gosta do que fez e continua fotografando. Além disso, tem uma relação muito legal com o restaurante também. Mas seu maior hobby, claro, segue sendo a fotografia.

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