Rafael Corrêa: Além das estrelas

Portador de esclerose múltipla, Rafael Corrêa fala da paixão pelos quadrinhos e como retrata suas experiências e vivências por meio de cartuns

Rafael Corrêa | Crédito: Carol de Góes
Por Gabriela Boesel
Inicialmente pode parecer um pouco tímido, mas Rafael Corrêa não hesita em sorrir - e o fez com bastante frequência durante quase duas horas de conversa. As dificuldades em conviver com uma doença neurológica não o impediram de procurar o sucesso na área dos quadrinhos. Nascido em Rosário do Sul, em 1976, Rafael deixou para trás o município de cerca de 40 mil habitantes para enfrentar a imensidão da Capital, mas não deixa de enfatizar que as primeiras portas se abriram lá mesmo, na cidade natal.
É formado em Publicidade e Propaganda pela PUC, mas prefere não se intitular publicitário - e explica que, na época, era o curso que mais se aproximava do que queria fazer: criar -. Se fosse hoje, prestaria vestibular para Design. O cartunista até chegou a experimentar trabalhar em uma agência, mas, após atuar por um mês em uma, descobriu que não era o que queria.
Filho dos bancários aposentados Julio Carlos Franco Corrêa e Laureci Bittencourt Corrêa, Rafael dividiu a infância com três irmãos, ocupando o posto de terceiro filho. Há três anos divide o apartamento na Capital com a namorada e fotógrafa Carolina de Góes, com quem começou a namorar à distância, ele em Porto Alegre, ela em Brasília. Após seis meses nessas condições, Carol, como ele se refere à amada com carinho, fez as malas e veio para o Sul, de onde não saiu mais.
"Toda criança nasce artista"
Apaixonado pelo que faz, o cartunista defende que todo ser humano tem a necessidade de se expressar. Para exemplificar essa crença, relembra uma frase de Pablo Picasso: "Toda criança nasce artista". "A única diferença é que umas têm mais habilidade do que as outras" explica. E, pelo jeito, Rafael se encaixa no primeiro grupo. Com orgulho, ele conta que o gosto pela arte surgiu ainda cedo. "Com nove anos decidi que queria trabalhar com desenho, ou ser cineasta", lembra.
A dúvida sobre qual caminho seguir foi sanada rapidamente. Mesmo fã de cinema, foi aos quadrinhos que Rafael se dedicou. Para ele, as duas artes são semelhantes, mas a segunda é mais fácil de aplicar. "Pego uma folha de papel e um lápis e sou Deus. No cinema, dependo de equipamentos, de equipe. Com desenho eu, sozinho, faço tudo, já o cinema tem uma mega produção", justifica a escolha, explicando, ainda, que o desenho apresenta um resultado mais rápido e fácil.
A produção do material começou aos 10 anos, quando criou o primeiro gibi. Relíquia que guarda até hoje em uma caixa de madeira, e que exibe com todo o cuidado. O documento, com poucas páginas, apresenta desenhos feitos a lápis e coloridos com lápis de cor, e conta a história de uma turma de crianças - seus amigos de infância -, com narrativa e diálogos. "Foram três números, com duas historinhas cada", diz, com orgulho, como se ainda se surpreendesse com a qualidade dos quadrinhos.
No começo, o maior incentivo, conta, veio de amigos e parentes. Os elogios sinceros provocaram em Rafael a vontade de seguir em frente. Foi então que, na busca por referências, decidiu que, mais do que quadrinhos, queria fazer tirinhas. A primeira "nasceu" aos 14 anos e foi publicada em um jornal de Rosário do Sul. "Este foi o início da minha vida profissional, mesmo sem ganhar dinheiro", registra, rindo.
Após anos na profissão e mesmo com o incentivo de pessoas próximas e reconhecimentos internacionais, o desenhista confessa que, no Brasil, não é fácil a vida de artista. "As pessoas acham que desenho não é trabalho. É difícil entenderem que é uma profissão. Eu pago minhas contas com desenho", desabafa. Um desabafo forte, como se estivesse engasgado desde a adolescência, quando publicou de graça suas tirinhas. "Naquela época eu não tinha essa visão, só queria que as pessoas vissem meu nome e meu trabalho nos jornais."
Um contador de histórias
"O desenho é para contar uma história e eu sou, acima de tudo, um contador de histórias". Essa é uma das definições sobre si mesmo, pelo menos no que se refere ao âmbito profissional. Começou a explorar profissionalmente o universo dos cartuns em 1994, depois de deixar o Interior. O primeiro contato foi em uma revista de histórias em quadrinho, como estagiário. Apesar de ser em uma editora pequena, a revista de cunho educativo contava com 10 mil assinantes. Rafael diz que "as histórias eram muito ruins" e, foi então que encontrou a deixa: pediu para escrever uma narrativa. A partir daí, passou a ser roteirista e desenhista da publicação, o que permitiu estreitar laços com profissionais da área.
No currículo, Rafael carrega "Artur, o arteiro", um dos primeiros sucessos. Baseado na sua infância, as histórias representam seus amigos e a vida vivida no Interior nos anos 1980. Tem ainda "Sapatiras", que retrata o universo de sapatos, onde cada estilo representa uma parcela da sociedade: o sapato de salto é a mulher, o sapato branco é o médico, o coturno é o brigadiano, a pantufa é o senhor.
Rafael conta que, mesmo com tanto trabalho desenvolvido, o desafio continua o mesmo: publicar. Já publicou na França, México, Argentina, na Folha de S. Paulo, mas em Porto Alegre, onde reside, ainda não conseguiu. "Os espaços são reduzidos, é uma mídia muito fechada", acredita. Mas, graças à Internet, é possível conquistar leitores de maneira independente. A grande dificuldade, segundo o artista, é a sequência trabalhosa que precisa seguir para realizar plenamente seu ofício. "Tenho que desenhar, publicar, mandar para a gráfica, divulgar. Tudo isso sozinho, e ainda assim, vender. É difícil, mas não me vejo fazendo outra coisa", diz, convicto.
Mesmo com as dificuldades, a lista de prêmios que Rafael conquistou é grande. Atualmente, já conta com 27 prêmios internacionais e o auge da carreira, lembra, foi em 2013 e 2014, anos em que ganhou premiações na Turquia, momento em que se sentiu valorizado pelo trabalho de cartunista. "A premiação era uma viagem a Istambul com acompanhante nos melhores hotéis e restaurantes. Senti que meu desenho me levou longe."
Como referências, o artista cita cinco cartunistas que considera seus pilares, por terem marcado sua trajetória e formação básica. O brasileiro Laerte, com Piratas do Tietê, inaugura a lista, seguido de do argentino Quino, criador de Mafalda. O norte-americano Bill Watterson, com Calvin e Hobbes, também está no top five, assim como o mexicano Sergio Aragonés, com Groo, e o francês Sempé, criador de Le Petit Nicolas. "É um de cada lugar, uma linguagem universal", explica.
Enfrentando o inimigo
Diagnosticado em 2010 com esclerose múltipla, doença neurológica que atinge o sistema nervoso e, consequentemente, os movimentos, o artista encontrou nos quadrinhos uma forma de expressar e, por que não, desabafar. A série "Memórias de um esclerosado" foi desenvolvida como uma autobiografia, por meio da qual Rafael conta a vida de quem tem a doença. "Sonhos, memórias, idas aos médicos, descobrir sintomas, pesquisas de tratamentos, rotina de exames", enumera. Para alcançar mais leitores, criou uma página no Facebook, cujo "sucesso automático e absurdo", como ele mesmo diz, o assustou no início, mas aos poucos, ele se conscientizou de que era exatamente isso que ele queria: "dar a cara a tapa, mostrando as fraquezas e as necessidades".
Expor na Internet sua vida em forma de quadrinhos foi uma escolha mais do que acertada. Ele conta que cada vez que posta uma nova página, renova a vontade de escrever. "É uma jornada de autoconhecimento. Um tempo que paro, olho para mim e vejo o que fiz na vida, o que estou fazendo, meus acertos, meus erros."
Teimoso, diz que ainda é um pouco orgulhoso por achar que não precisa de ajuda, "mas eu preciso", confessa, ao mesmo tempo em que diz que ainda é difícil abrir mão da autonomia, mesmo que as pessoas à volta se mostrem solícitas.
Um ser em transformação
Com o diagnóstico da doença, Rafael se viu revendo suas crenças e atitudes. Se antes era um cético, hoje já não duvida da existência de Deus. "Existe uma energia, alguma coisa que não sei explicar, mas estou desenvolvendo meu lado espiritual, não é religião, mas são coisas que a doença transformou em mim", explica. Uma transformação que o tornou mais forte. Não fisicamente, esclarece, mas psicologicamente ele se vê uma pessoa melhor, mais preparada, tolerante, serena e aberta ao mundo.
Canhoto, ironicamente a debilidade atingiu seu lado esquerdo, tornando o trabalho dolorido e complicado. A habilidade e a destreza de outrora, hoje já não existem mais, e o que antes ele fazia em horas, se transformou em um trabalho de dias. "Tem vezes que o braço não tem força", explica. Sua meta é fazer dois cartuns por semana. Mas mesmo com essas dificuldades, se aposentar não está nos planos. "Pretendo desenhar até não dar mais. Quando não der com a esquerda, vai com a direita, depois com o pé", projeta, aos risos.
Para o futuro, garante que ainda não realizou todos os sonhos. Lançar um livro é um deles, assim como trabalhar com desenho animado e com cinema. Mas o que mais almeja é reverter a doença. "Daqui a 10 anos me vejo curado e sem sequelas, desenhando com mais facilidade. Sou sonhador, um otimista incorrigível, mas é o que eu quero e estou indo atrás", conta.
Alimentação foi outra coisa que também mudou radicalmente na vida de Rafael, pois, para ele, se alimentar está diretamente relacionado à saúde. Antes, confessa que comia apenas "porcarias", e não sabia cozinhar. "Se tivesse ração eu comeria, porque gula nunca foi meu pecado", fala, em tom descontraído. Entretanto, com a influência da namorada, aprendeu a se virar na cozinha, onde, juntos, buscam novas receitas, mas sem esquecer as antigas, entre elas uma torta de legumes que, atualmente, se revela como seu o prato preferido.
Às estrelas e além
Escritores cuja escrita é mais prática são seus favoritos, como George Orwell, com sua obra "Na pior em Paris e em Londres". Autobiografias ou livros com narrativas na primeira pessoa também estão na lista, assim como os do romancista norte-americano John Fante, e do jornalista e ativista Jack London, pseudônimo de John Griffith Chaney. Em matéria de música, rock é o ritmo que mais gosta e que, inclusive, está presente nas horas de trabalho. Os clássicos britânicos Beatles, The Who e Velvet Underground estão no topo da lista, seguida da calmaria do jamaicano Bob Marley. O cinema, que antes era uma paixão mais presente na vida, já não é mais costume. Ele diz que o desencanto se deu porque o cinema atual está em crise e toda a força criativa está direcionada às séries. Mas mesmo assim não abre mão de afirmar convictamente: "Stanley Kubrick é imbatível".
"Ad astra et ultra". Em português: "às estrelas e além". Este é o lema que rege a vida do desenhista que defende que é preciso sempre buscar o melhor, alcançar um objetivo maior do que o que já foi conquistado. "Quando chegar às estrelas, tu tens que passar por elas", diz. Mas se for para se referir ao momento pelo qual está passando, prefere usar o lema "Ad astra per áspera", ou "é árduo o caminho das estrelas".
Com uma infância perfeita, como ele prefere resumir, o artista diz que cresceu no lugar certo, dentro da família certa, com liberdade, muito carinho e amor, e rodeado de grandes amigos. Por carregar na lembrança tantos momentos bons, e prestes a completar 40 anos, prefere manter essas memórias vivas em forma de quadrinhos. Por isso, Rafael é defensor da frase "só fica velho quem quer". E, para ele, o trabalho é a melhor maneira de continuar jovem, ou seja, seus planos são continuar desenhando e contando histórias até que ultrapasse as estrelas.

Comentários