Carlos Gerbase: Quatro homens em um

Cineasta, jornalista, músico e professor, Carlos Gerbase está entre os nomes mais expressivos do cinema brasileiro

Carlos Gerbase - Rogério Ferrari

Sem planejamentos, nem expectativas. Foi assim que o cinema entrou, aos poucos, para a vida de Gerbase até constituir uma profissão. Com habilidade para as artes, transformou muito de seus hobbies em profissão, explorou as letras, a música e o audiovisual. No palco e nos estúdios de áudio, ajudou a construir parte da história do rock no Rio Grande do Sul. No set de filmagens, tornou-se um dos nomes mais expressivos do cinema nacional. Somem-se a isso os romances, os contos, as crônicas e os ensaios publicados, e, pode-se dizer, Gerbase foi protagonista do próprio caminho. Hoje, divide a rotina entre as atividades na produtora Prana Filmes e na academia, como professor na Famecos.

Uma câmera Super 8 e alguns amigos foram o ponto de partida para uma carreira impensada. Cursava Jornalismo na Famecos, no fim dos anos 1970, quando conheceu o colega Nelson Nadotti, que mantinha um grupo de debates sobre cinema e arriscava algumas produções independentes. Em 1978, os dois e um terceiro amigo, Hélio Alvarez, decidiram fazer um filme juntos. Surgiu 'Meu primo', com 45 minutos de duração, que, embora produzido com a ajuda de amigos como atores e "juntando as mesadas" da turma, entrou em cartaz. "Ali, vi a diferença entre fazer um filme naquela época e escrever os meus contos. O roteiro parte de um conto que escrevi, a partir de uma história que combinamos. A transformação em filme me pareceu um negócio maravilhoso", resume.

Vieram os filmes 'No amor', com direção de Nadotti, o longa-metragem em Super 8 'Inverno', dirigido por Gerbase e, em seguida, 'Verdes anos', no qual dividiu a direção com Giba Assis Brasil. O longa em 35mm ultrapassou a marca de 200 mil espectadores, um sucesso inesperado. "Na época, a carreira profissional como cineasta praticamente não existia. Eu fazia aquilo pensando na grande brincadeira que era criar filme. Custava dinheiro, envolvia coisas sérias, mas implicava em contar uma história fazendo um bom filme. Super 8 era uma grande fábrica de filmes, uma fábrica divertida. A partir do 'Verdes Anos', a gente começou a pensar: esse negócio pode ser legal."

Em 1987, Gerbase foi um dos fundadores da Casa de Cinema de Porto Alegre, onde manteve sociedade por 24 anos. E quando a tecnologia VHS estava crescendo, abriu uma pequena produtora de vídeo, chamada Invideo Produções Cinematográficas. A empresa desenvolvia vídeos institucionais e de música. Sob nova razão social, a companhia existe até hoje. Primeiro, transformou-se em Vortex e, hoje, é a Prana Filmes, que dirige ao lado da jornalista e produtora Luciana Tomasi. "Essa empresa acabou sendo uma âncora mais sólida para essa carreira", afirma.

De expressão

Entre as produções que marcam a carreira, 'Inverno', eleito Melhor Super 8 no Festival de Gramado, tem significado especial. Segundo Gerbase, é um dos seus filmes mais pessoais, que o ajudou a compreender que, através do cinema, poderia falar de si "e, ao mesmo tempo, falar de todos". "'Meu primo' tem muitas inquietações da época, da forma como eu pensava. Ali, percebi que o cinema podia ser um meio de expressão tão interessante quanto a literatura, que continuava muito importante para mim", define. 'Inverno' é citado pela relação pessoal, enquanto 'Verdes Anos' por abrir os olhos para um caminho comercial.

Outro destaque é 'Deus ex-machina' (1996), produzido com a Casa de Cinema, lembrada pelo desempenho de uma equipe altamente criativa. Foi seu primeiro filme a integrar um festival de cinema internacional, o Festival de Clermont-Ferrand, na França - à época, um dos mais importante eventos de curtas do mundo - , onde recebeu menção honrosa. Em território nacional, venceu 11 prêmios em Gramado.

O longa 'Tolerância' (2000) também é lembrado por lhe permitir compartilhar algumas reflexões e, da mesma forma, o novo 'Bio', finalizado no ano passado e que, mesmo aguardando lançamento, já angariou três prêmios na última edição do Festival de Cinema. "'Bio' é, também, um filme em que consegui colocar várias inquietações. O cinema tem que entreter e encantar as pessoas, mas tem que dizer coisas. Ele passou em vários outros festivais e espero que, quando entrar em cartaz, tenha a chance de chegar a mais pessoas."

Pelos encontros

Também de forma despretensiosa teve início outro hobby, que acabou por se tornar uma das bandas mais importantes do cenário alternativo brasileiro. 'Os Replicantes' nasceu em dezembro de 1983, a partir da união de amigos que, nas palavras dele, não sabiam tocar nada. "Compramos instrumentos porque queríamos fazer música e parecia uma coisa interessante. Primeiro, três amigos; depois, quatro. A banda fazia coisas que ninguém mais fazia, pelo menos, em Porto Alegre. Chamamos uns amigos para ouvir e eles disseram que era legal. Acabou virando uma coisa séria", relata ele, que, durante 19 anos, ocupou os postos de baterista e, depois, vocalista. Sem Gerbase desde 2002, o punk rock dos Replicantes continua e os vínculos construídos nesse período também seguem firmes. "Encontrei um monte de malucos, músicos, e muito deles são meus amigos até hoje. Eles são a turma mais divertida."

E o Jornalismo? Ao fim da graduação, ele experimentou a prática da profissão. Foi repórter e subeditor na Folha da Tarde, trabalhando com a equipe de cadernos regionais. No diário vespertino, escrevia sobre a Região Metropolitana e, apesar de admitir que se saía bem, após um ano, concluiu que não era aquilo que queria fazer. Pediu demissão e até pensava em trabalhar no Coojornal, veículo alinhado ao que pensava, mas a intenção não se concretizou. No entanto, um convite do professor Antoninho Gonzalez, então diretor da Famecos, o levou de volta à faculdade, desta vez, para conduzir as aulas de cinema do curso de Jornalismo. "Com pouquíssima experiência, tinha 22 anos na época, vim dar aula aqui no curso de Jornalismo, fazer super 8. Passados 30 anos, ainda estou aqui", relembra.

Ainda como escritor, assina obras de ficção na forma de contos e romances, além de ensaios na área do cinema. Também já colaborou com o jornal Tchê, a revista Wonderfull e, há cerca de cinco anos, mantém uma coluna em Zero Hora. É deste espaço de opinião que deriva seu livro mais recente, 'Anarquia e utopia: faça uma todo dia'. Na vida do cineasta, roqueiro e escritor, a rotina de professor contrasta com a liberdade do trabalho com as artes. Ele reconhece que a estabilidade da função pode parecer atraente quando se constitui família, mas garante que essa não é a razão que o mantém na universidade. "Dar aula é um ato criativo, gosto de buscar novos temas, novas estratégias e ver que os alunos também se renovam. É muito legal ver essas pessoas virarem teus colegas e daí tu pensa: posso ter ajudado um pouquinho - ou atrapalhado, mas acho que a maioria eu ajudei", argumenta.

Quando a aluna é a filha mais velha, a recompensa é ainda mais especial. Como professor, Gerbase pôde acompanhar a produção dos primeiros filmes de Iuli, que se graduou em 2010 no curso de Produção Audiovisual da Famecos. "Esses momentos de encontro - de música, aulas, filmes, pessoas - retiram o caráter maquínico da vida. Quanto mais velho a gente fica, mais valoriza as coisas seguras, confortáveis e quando a gente é jovem está se lixando para isso. Tenho a impressão que continuo com uma certa vontade de fazer coisas."

Um mundo maior

A relação com a universidade traz também outro significado: ela representou, em meados da década de 1970, a entrada em um universo mais amplo. Filho da dona de casa Lea e do médico José Gerbase, teve a infância e a juventude no que define como um mundo protegido. Como estudante, frequentou o Colégio Bom Conselho e depois o Anchieta, de onde reconhece os bons professores - lá, recebeu incentivo para escrever ficção. Após, passou um ano no quartel, onde teve de se submeter à rígida disciplina. "O que abria minha cabeça na infância eram os livros. Eles me jogavam para o mundo que era meio fictício. A universidade foi onde me soltei", sustenta.

Nascido em Porto Alegre, o quinto filho de Lea e José, na família que se completa com os irmãos Maria, José, Antônio, Luiz e Andréa, foi o único a optar pela Comunicação, enquanto os demais seguiram a Medicina e a Engenharia. "Sou tipo ovelha negra, o único que saiu dos territórios mais seguros", diz, ao relatar que o gosto pela escrita e pela leitura inspirou a decisão. Entre as memórias da infância, está a casa da família, no bairro Moinhos de Vento. O porão servia como adega e abrigava "péssimos" vinhos, que sempre estragavam, até que o irmão mais velho, Zeca, começou a estudar fotografia e transformou o ambiente em um laboratório fotográfico. "Achei aquilo incrível e aprendi com ele. Quando ele casou e saiu de casa, herdei aquele espaço. Isso foi muito importante quando comecei a fazer cinema", observa, ao contar que atuou como fotógrafo de cena de muitos filmes.

Hoje, além de Iuli, 28 anos, é pai da relações internacionais Livi, 24, e da jornalista Iami, 22, frutos do relacionamento que começou em 1981, com Luciana Tomasi, também jornalista, escritora e produtora. No lazer, cinema, teatro e música continuam presentes, em especial o gênero erudito e o mundo das séries. Tem se dedicado a assistir produções no formato e, recentemente, assinou a série documental chamada 'Diálogos sobre cinema', com Nelson Nadotti. "Apesar de ser muito simples e rápida, baixo orçamento - são seis episódios de 25 minutos -, ter tempo para dizer as coisas me atrai bastante. Gosto de discursos mais articulados, gosto de criar universos, ter tempo para acostumar aos personagens", explica. Madmen, House of Cards, Homeland, Breaking Bad e Newsroom são alguns exemplos que cita, mas o título de "A melhor série de todas" vai para 'Os Sopranos'.

Mente aberta

Ele tenta se manter atualizado nos filmes de Hollywood, mas admite que prefere os europeus. 'Três anúncios para um crime', mesmo sendo norte-americano, é destaque pela qualidade do roteiro e, do lado das séries, recomenda as documentais como 'Making a murderer' e 'Wild Wild Country'. "No tempo da Espaço Vídeo, eu era o cara que ia naqueles que ficavam embaixo, na prateleira", brinca, ao falar sobre as escolhas para assistir. Entre as séries que mais o impactou nos últimos tempos, está 'Cenas de um casamento', mais conhecida na forma de filme. "Tu fica pensando como ele conseguiu fazer um negócio tão impactante com tão pouco dinheiro", reflete.

Na literatura, por muito tempo, evitou as obras de não ficção. Já foi leitor  de ficção científica, de autores gaúchos como Erico Verissimo, Josué Guimarães e Moacyr Scliar, da literatura contemporânea do século 20, dos livros de aventura... Recentemente, descobriu os norte-americanos Philip Roth e John Updike, e, motivado muito pela realidade da academia, aderiu aos livros de não ficção, a partir da Filosofia, perpassando as obras de Friedrich Nietzsche, Michel Foucault, Michel Maffesoli e Edgar Morin. Nos últimos 10 anos, também se interessou por Psicologia nas suas intersecções com a Biologia, o que levou a temas como arqueologia, paleontologia, pré-história combinados com comportamento humano.

A vontade de encontrar novidades também está presente para quem admira a música. Gosta de pesquisar nas revistas e sites as músicas para baixar, que permeiam do rock e eletrônica à erudita, jazz e ópera. "Tento mostrar aos meus alunos que todo gênero musical vale a pena ser conhecido. Cineasta tem que conhecer todos os gêneros musicais, fora sertanejo universitário e pagode - esses aí podiam desaparecer", diz entre risos. Nos esportes, pratica natação e ioga, mas, para acompanhar, afirma que o futebol é o que realmente o emociona. "Brinco que, quando me aposentar, vou me dedicar um pouco mais ao Grêmio", enfatiza, ao mencionar a "herança" do pai, que chegou a exercer a presidência do clube.

E, por fim, talvez, o único hobby que não se transformou em profissão: jogar botão. A atividade, que o acompanhou na infância e na faculdade, foi retomada há cerca de cinco anos, por meio de uma turma que se reúne uma vez por mês para praticar. "Esse vai ser um hobby até morrer", sentencia.

Liberdade

Eclético na música, no cinema e na literatura, ele diz que não gosta de referências e, aos alunos, costuma defender: tem que ter menos referências e mais repertório. "Tem que ler mais, ir ao cinema, ao teatro, encher a cabeça com repertório. Quanto mais rico, melhor", pontua e acrescenta: "Meu repertório foi formado muito pelo cinema europeu, francês, italiano, alemão. Kubrick é uma referência, sim, mas, da mesma forma, que Van Gogh na pintura. Nunca vou filmar como o Kubrick, vou sempre fazer do meu jeito".

A melhor maneira de encarar a vida, ele compreende, é no modo libertário. Para Gerbase, as pessoas devem levar a liberdade no limite possível, assumindo suas ações e aguentando as consequências. "Tem um cara que gosto muito, o escritor e psicanalista Paulo Sergio Rosa Guedes, que diz que não pode ter culpa, tem que ter responsabilidade. Acho que é uma boa maneira de ver as coisas."

Aos 59 anos, Gerbase exibe uma trajetória com produção intensa e confessa que não se sente realizado, mas alguém que ainda quer realizar. "Seria como já ter feito tudo que tinha que fazer, mas não sinto isso", frisa. A interdisciplinaridade é uma característica que chama a atenção na sua personalidade e, ele reconhece, pode ser uma qualidade ou um defeito. "Algumas pessoas, quando decidem o que vão fazer, direcionam sua vida para isso. Sou dispersivo, mas, ao mesmo tempo, sou um cara que vai atrás do que gosta. Isso permite que eu vá mudando ao longo do tempo. Se fosse me dedicar só a uma coisa, talvez tivesse chegado mais longe, mas teria perdido coisas interessantes."

*Com colaboração de Karen Vidaleti

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