Dirceu Chirivino: O valor da memória

Dirceu Chirivino dedicou meio século ao trabalho em arquivos de jornais, mas também se aventurou no mundo das letras

Dirceu Chirivino | Crédito: Cristiano Estrela/CP
Entre arquivos que guardam fotografias históricas publicadas pelo centenário Correio do Povo e mais de 33 milhões de negativos, o jornalista Dirceu Chirivino resgata a própria trajetória profissional de mais de 50 anos. Um período em que acompanhou momentos difíceis enfrentados com o regime militar, assistiu ao fechamento de dois jornais e ao nascimento de outro, viu o processo de modernização da prática jornalística e, talvez mais importante que tudo, ajudou a preservar boa parte da memória da imprensa gaúcha. Hoje, do alto de seus 73 anos, o coordenador do arquivo de fotos do Correio do Povo e editor de Negócios da Revista Amanhã pode dizer que viveu momentos de altos e baixos, mas aprendeu a lidar com eles. "Vejo as pessoas reclamarem, mas, poxa, a vida não é feita de facilidades", resume, bem a seu modo simples e discreto de agir.
Natural de Uruguaiana, partiu para a capital gaúcha em 1959 em busca de trabalho e foi pelo jornal Última Hora que começou a carreira profissional deste jornalista provisionado. Em dezembro daquele ano, na sucursal gaúcha instalada na Galeria do Rosário, no centro de Porto Alegre, Dirceu teve os primeiros contatos com a área em que até hoje atua, ajudando a montar o arquivo do jornal. "A Última Hora foi uma escola de jornalismo. Modernizou os processos de edição de jornal, que eram um tanto quanto arcaicos no Estado", relata.
O perfil esquerdista de Última Hora fez do veículo alvo de censura do governo militar, que o impediu de circular. O diretor e empresário Ary de Carvalho lançou então, em 4 de maio de 1964, um novo título: Zero Hora. Assim, Dirceu teve o que considera um privilégio, o de assistir à fundação da Zero Hora, com Ary de Carvalho liderando um grupo de empresários. No ano seguinte, foi convidado a abraçar o projeto de criar e organizar o arquivo do Correio do Povo. O trabalho era coordenado por Jacques Pureur, que logo passaria à área administrativa do jornal, transmitindo a Dirceu a tarefa de coordenar o processo de preservação da memória do Correio. "Convivi com grandes profissionais, grandes equipes de Jornalismo", diz.
Aos poucos, a Companhia Jornalística Caldas Júnior, no entanto, começou a perder espaço no mercado e, com dificuldades financeiras e dívidas pela implantação da TV Guaíba, fechou as portas em julho de 1984. Cerca de dois anos depois, o Correio voltaria a circular, desta vez sob a gestão do empresário Renato Ribeiro, e, para colocar o arquivo em ordem, lá estava Dirceu novamente, após uma curta passagem pelo Jornal do Comércio. "Esse arquivo é um dos ativos mais valiosos que a empresa tem. São fotos de pessoas, de registros históricos como a Guerra do Vietnã, a Guerra das Malvinas, o começo da corrida espacial? Tudo isso dá satisfação no trabalho, porque tu sabes que está preservando uma memória, que amanhã as próximas gerações irão se debruçar para se aculturar."
Arquivista e colunista
O jornalista que passou boa parte da carreira se dedicando ao trabalho em arquivo também ganhou espaço nas redações. Corria 1988 quando foi convidado a se integrar à equipe da Revista Amanhã. Por anos, foi responsável por desenvolver uma espécie de jornal contendo as principais notícias de economia do dia, que circulava na redação; assessorou Jorge Polydoro, presidente da editora da revista, a Plural Comunicação; e, ainda por vocação, dedicou-se também à memória da própria Plural e suas diferentes publicações. Corria 1997 quando o diretor de redação de Amanhã, Eugênio Esber, sugeriu que assumisse uma coluna sobre negócios na região Sul. Depois da própria oportunidade de trabalhar na Amanhã, Dirceu reconhece os apoios que recebeu: "Eugênio me estimulou muito e me deu mais espaços. Polydoro me valoriza muito mais do que o valor que eu talvez tenha. São pessoas que eu prezo muito", diz, grato.
Do diretor de Redação do Correio do Povo, Telmo Flor, também recebeu tarefa que considera outra grande oportunidade: produzir a coluna Há um século no Correio do Povo, que divide com o colega Renato Bohusch. O trabalho de pesquisa diária é para ele mais uma fonte de aprendizado, pela qual tem constatado que os acontecimentos se repetem muito mais do que se renovam. Parece estranho, mas ele esclarece: "A corrupção naquela época. A gente pensa que todo mundo era sério naquela época, que não se praticavam os crimes que ocorrem hoje, mas talvez fosse até pior". Conta que há registros de um presidente da República que ganhou como presente de empreiteiros da Central do Brasil uma ilha em Angra dos Reis. "Às vezes, parece que estou lendo o noticiário de hoje. Mudam os personagens, o linguajar, mas os acontecimentos coincidem muito com os de hoje", relata.
Além de supervisionar a equipe do arquivo fotográfico e o espaço Um século no Correio do Povo, também assina a coluna Outros verões, publicada às sextas-feiras, apenas durante a estação quente, e que resgata os costumes de verões passados. A rotina de trabalho é intensa e o ocupa das 8h às 19h, o que o leva a sentir a necessidade de guardar um pouco mais do dia para si. "Às vezes, sinto vontade de trabalhar num lugar só, mas, por enquanto, não decidi fazer isso. Estou muito satisfeito com o que faço", reconhece.
O simples que satisfaz
Dirceu Chirivino Gomes cresceu à beira do Rio Uruguai, tendo a prática de esportes como uma constante na juventude. Futebol, natação, vôlei, boxe e remo foram algumas das modalidades que ocuparam o cotidiano do garoto, quinto filho na família composta por sete irmãos e os pais Ida e Dirceu. À proximidade com os esportes credita a longevidade profissional. "Acho que não são tantas pessoas assim que trabalham aos 73 anos", avalia.
O pai gerenciava o setor mecânico da usina elétrica de Uruguaiana, por isso a família morava em uma casa construída dentro da empresa e próxima do rio. O ambiente e o número de irmãos garantiam certa liberdade, uma vez que os pais precisavam dividir as atenções entre todos. "Tive uma infância muito feliz. Não foi rica, mas também não foi sacrificada. Nunca me faltou nada", diz.
Viúvo de Marleni há cerca de quatro anos, não esconde o orgulho e carinho ao falar das filhas Clarissa, que estuda Recursos Humanos na Unilasalle, e Juliana, doutora em Química e professora na Ufrgs. As duas, segundo ele, o acompanham de perto e Clarissa é, inclusive, sua vizinha de porta. De férias, programou viagem a Florianópolis, em Santa Catarina - e a filha, zelosa, decidiu que o acompanharia no trajeto de carro e depois retornaria a Capital, para que não fizesse o percurso sozinho. "Clarissa e Juliana são muito queridas e estão sempre atentas ao que faço", conta.
As leituras são parte do cotidiano de Dirceu e concentram-se principalmente em jornais. Admite que não é um leitor assíduo quando o assunto é literatura, pois não sobra muito tempo para os livros. Quando possível, dá preferência às obras que se relacionam com o que faz, o que inclui as de conteúdos de cunho histórico. Apreciador de cinema, reconhece que também tem frequentado pouco as sessões, pois considera que a produção atual está muito mercantilizada. "Ainda se faz bons filmes, mas há muitos que carecem de maturidade em argumentos", pontua, com conhecimento de causa.
Coragem para fazer
A música é um gosto aprimorado pelas facilidades dos tempos de hoje, que não exigem mais a compra de um disco inteiro para se ouvir poucas faixas. Confessa que tem muito conhecimento sobre os estilos, mesmo assim aponta os clássicos e o jazz como gêneros que lhe caem bem. "Se me perguntar o nome, não vou saber, mas gosto de sentir a música no meu ouvido." MPB, sertanejo de raiz, bossa nova e reggae também são estilos que o agradam. Cita artistas como Almir Sater, Inezita Barroso, Elis Regina, Tom Jobim e Emilio Santiago, mas, de forma geral, não revela preferência por gêneros. "Gosto, principalmente, de músicas que tu não consegue assimilar na primeira vez que ouve. Que tu vai tentar assoviar e não consegue."
Dirceu considera-se alguém bastante tolerante em determinadas situações. Em contrapartida, assume que demora a esquecer atos negativos praticados por outras pessoas, o que define como rancor. "Infelizmente, tenho esse problema e procuro neutralizá-lo na medida em que posso", garante. O respeito às pessoas é um valor em que acredita e defende, a começar por momentos simples, como dar a preferência ao pedestre no trânsito. Mas também admite que pode errar e não agradar a alguém. "Não sou um cara que acha que está sempre certo. Posso até cometer injustiças, mas nunca em sã consciência. E se percebo que cometi alguma, perco o sono."
Ao recordar a trajetória que soma mais de meio século e as conquistas pessoais, considera-se realizado. Argumenta que nunca foi ambicioso - na verdade, se diz até um pouco azarado - e não chegou a formar riqueza, mas construiu uma família e conquistou a formação profissional no dia a dia, a partir dos relacionamentos estabelecidos e da atenção a pessoas que poderiam doar conhecimento à sua experiência de vida. "Confesso que já criei alguns conflitos relacionais, por conta de exigir demais, mas quero apenas que as coisas andem certas. Sou um cara que sempre brigou pelo que queria e fez o possível para dar boas condições à família", conclui.

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