Edgar Vasques: Pintando o sete no jornalismo

O desenhista que criou o Rango, um símbolo da resistência à ditadura militar, mostra que o importante é não abrir mão dos princípios, mesmo que possam polemizar.

Edgar Vasques - Reprodução

Há 56 anos, em Porto Alegre, o primeiro dos seis filhos que nasceriam da união de Hélio e Belquis ganhava o maior nome. Edgar Luiz Simch Vasques da Silva é o único registrado com o primeiro sobrenome do pai, e foi exatamente por isso que optou por usar apenas Edgar Vasques - "ficava diferente de todo aquele bando", lembra. Um bando que, a exemplo do primogênito, encontrou nas artes sua paixão e seu meio de sustento. Além do mais velho, outros dois irmãos são desenhistas, um é poeta e outro é ator - o quarto é Oscar Simch, da peça Homens de Perto. A exceção fica por conta do mais novo, que preferiu ser geólogo.

Crescendo nessa família de classe média instalada no centro da capital gaúcha, Edgar tinha o pátio da Igreja Nossa Senhora das Dores como playground e os balcões de botequim como palco. "Eu tinha cinco anos e meu pai já me apresentava como um artista para os amigos. Pedia para que eu mostrasse meu talento para eles nos bares que freqüentava", conta Edgar, acrescentando uma análise interessante: "Toda criança desenha. É uma forma de expressão ao alcance dela. Mas, após aprender a ler e a escrever, algum bloqueio acontece e, por isso, pouquíssimos adultos continuam". Ele acredita que o desenho torna-se um artifício relativizado e até desnecessário quando essas linguagens universais ? a leitura e a escrita ? são adquiridas. "Nossa sociedade supõe que, ao ensinar uma criança a ler e a escrever, está cumprindo seu papel de torná-la apta à expressão e à comunicação. As aulas de educação artística são pouco valorizadas", observa. Portanto, quando um adulto vê-se obrigado a desenhar, mais tarde, apela para os primitivos bonecos de palitinho ou para os patinhos na lagoa: "Foi onde ele parou com seis anos", conclui gargalhando.

O incentivo e a propaganda que o pai fazia do "filho artista" pela cidade surtiram efeito sobre o garoto e até sobre o mercado. Edgar sentia uma responsabilidade imensa, ficava tenso quando desenhava em público e até desenvolveu um cacoete: "Mordia tanto o meu dedo polegar que cheguei a criar um calo. Tenho até hoje". Assim, o prazer de desenhar acabou admitindo essa conotação de responsabilidade e consciência, que pode ser facilmente percebida nas maiores realizações do desenhista. "E com esse cartaz todo do meu pai, com 18 anos, metade de Porto Alegre já sabia que eu rabiscava", recorda. A conseqüência disso é que os empregos começaram a aparecer para Edgar sem que ele precisasse procurar. "Mas isso tem seu lado negativo", pondera: "Houve momentos em que me vi sem trabalho e não sabia por onde começar".

E o tal "Milagre Brasileiro"?

A primeira remuneração veio aos 14 anos, quando criou a capa de um carnê do Campeonato Gaúcho de Futebol. Mas foi aos 18, em 1968, que começou a trabalhar regularmente, fazendo ilustrações para o jornal Correio do Povo. Foi na época em que ele voltou de uma viagem à Europa, viabilizada através de um testamento deixado pelo avô ? mais um apoio da família ao seu talento. "No documento, dizia que uma parte da herança deveria ser do "neto artista", para que eu conhecesse a França, a Itália e outros pólos culturais", conta. Durante a viagem, em todos os países que visitava, Edgar fazia desenhos de tudo o que via pela frente. Quando retornou a Porto Alegre, uma matéria do Caderno de Sábado, do Correio do Povo, alardeou: "Jovem artista desenha Europa em seu bloco". Logo foi chamado pelo editor do Caderno ? "Oswaldo Goidanich, grande amigo do meu pai que sempre ouvia todos aqueles elogios a mim" ? para trabalhar no jornal.

Em 1969, ingressou em duas faculdades na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS). A de Artes Plásticas foi abandonada ainda no início, pois Edgar gostou mesmo foi da grande efervescência que acontecia na de Arquitetura, onde os estudantes promoviam mobilizações culturais e políticas. Na volta para casa, quando as aulas terminavam, uma triste realidade, que lhe chamava a atenção desde pequeno, tornava-se quase uma perseguição: "Eu caminhava pelo centro da cidade e só via bêbados, prostitutas, mendigos, loucos, crianças de cinco anos fumando? Era uma coisa horrível, embora não fosse muito diferente do que vemos hoje. A diferença é que, naquela época de ditadura, existia uma feroz censura que impedia os meios de comunicação de exporem essa podridão. O que víamos na mídia era o "Milagre Brasileiro", a "Corrente Pra Frente", o "Ame-o ou Deixe-o", e essa contradição foi me desesperando".

Foi a partir dessa angústia, dessa sensação de mãos atadas e desse espírito de solidariedade humana que Edgar criou seu personagem mais famoso. O Rango, um indigente esfomeado, marginalizado e desempregado que vivia dentro de uma lata de lixo, estreou em 1970 na revista Grilus, do Diretório Acadêmico da Faculdade de Arquitetura. "Poucas semanas depois de lançarmos a revista, avistei um cara no campus vestindo uma jaqueta jeans com o Rango pintado nas costas. Me dei conta de que a minha idéia tinha causado certo impacto, de que essa abordagem era uma lacuna nas outras pessoas também", analisa.

Dois anos depois, ele foi chamado para fazer ilustrações num novo jornal que despontava no mercado como um veículo politizado e mais resistente à ditadura. Era a Folha da Manhã, da empresa Caldas Jr., onde Edgar começou ilustrando a coluna de Lauro Quadros e, logo depois, passou a fazer charges esportivas ? nas quais ficaram conhecidos os personagens Azulão e A Galera, criados para representar o Grêmio e o Internacional, respectivamente. Meses mais tarde, em 1973, Luis Fernando Verissimo saía de férias do jornal e deixava sua coluna em aberto: "Fui escolhido para substituí-lo e fiquei nervosíssimo. "Quem sou para fazer algo no lugar do Luis Fernando?", pensei". Depois de escrever três ou quatro crônicas "mais ou menos", segundo ele, teve a idéia de conversar com o chefe sobre a possibilidade de trocar a coluna por uma tira de quadrinhos diária. A proposta foi aceita, e o Rango voltou à cena. Durante quase um mês, o anti-herói que resumia a miséria do povo brasileiro ocupou aquele espaço na Folha da Manhã. "Quando o Luis Fernando voltou, me recolhi à minha insignificância e voltei a fazer as charges esportivas". Mas um monte de cartas começou a chegar à redação pedindo o Rango de volta. Edgar, então, ganhou um espaço fixo e, de quebra, a consolidação do personagem que viraria sucesso nacional.

Orgulho de sobra

"Sofri bastante com as pressões da ditadura naquela época", lembra, com o sorriso sumindo do rosto. "Era terrorismo. A polícia me seguia de madrugada, cercava a minha casa. Fui classificado como persona non grata em várias repartições, para pavor da minha família", conta. Mesmo no meio desse clima tenso, ele não recuou. Em 1974, lançou o Rango 1, uma compilação das melhores histórias do personagem que contava com um prefácio assinado pelo escritor Erico Verissimo. A obra, que foi a primeira publicação da L&PM Editora, surpreendeu Edgar ao ser a mais vendida da Feira do Livro de Porto Alegre naquele ano. Nunca um livro de quadrinhos havia conquistado tal façanha. A partir daí, o Rango passou a ganhar novas compilações e a ser publicado em jornais de Norte a Sul do país: "Alguns mais visados pela censura até se deram mal. O Pasquim, por exemplo, foi retirado das bancas do Brasil inteiro por causa dele". Mas o mendigo não se entrega: continua até hoje na ativa, como atração do Jornal do Brasil e com um novo livro, que celebra seus 35 anos completados em 2005, com um conteúdo indiscutivelmente atual.

Edgar e Luis Fernando Verissimo ainda dividiram espaço outras vezes após serem colegas na extinta Folha da Manhã - porém, trabalhando juntos. "Me orgulho muito de ter desenhado O Analista de Bagé, um grande personagem dele, para a revista Playboy", ressalta, lembrando que, desta vez, apenas desenhava, enquanto Luis Fernando escrevia. A parceria durou sete anos, de 1983 a 1990, ano em que Edgar participou de mais um projeto do qual se honra: Tangos e Tragédias, o espetáculo musical e teatral de Hique Gomes e Nico Nicolaiewsky, que foi convertido em um belo álbum gráfico. Pouco depois, iniciou uma larga passagem pela Prefeitura de Porto Alegre, onde trabalhou como diretor de arte durante 11 anos para a administração do Partido dos Trabalhadores (PT-RS), que durou 13: "Foi um trabalho muito bonito. Várias logomarcas e símbolos que estão nas ruas da Capital fui eu quem criei".

Outro imenso orgulho de Edgar foi ter coordenado toda a construção visual do projeto de comunicação interna da Refinaria Alberto Pasqualini (Refap), da Petrobras. O trabalho, que começou em 2003, contou com jornais educativos, abrandados com personagens cheios de humor. "Atingimos resultados incríveis junto aos funcionários, e acabamos de vencer o Prêmio Aberje Nacional de Comunicação Empresarial", comemora. No entanto, o desenhista não parou de produzir suas charges. Na revista mensal da Fecomércio, ele continua opinando através de desenhos.

Paizão fora do eixo

Casado com a jornalista e locutora Cléa ? "ela é muito requisitada profissionalmente; tem a voz-padrão feminina", orgulha-se ?, Edgar é o legítimo pai coruja. O filho Antônio, de 14 anos, passa as tardes desenhando, criando maquetes e montando miniaturas tridimensionais. "O guri é um artista. A mesa de trabalho dele fica ao lado da minha, porque adoro ver o que ele anda aprontando", derrete-se. Com uma flexibilidade razoável de horários, por produzir grande parte de seus trabalhos em casa, o desenhista consegue estabelecer uma convivência um tanto continuada com Cléa e Antônio. No entanto, não abre mão do futebol com os amigos nas noites de segunda-feira nem das reuniões com os membros da entidade que fundou, Grafistas Associados do Rio Grande do Sul (Grafar), às terças. "Jogar bola é o único esporte que pratico. Há 48 anos faço isso com certa freqüência", garante, acrescentando que "os encontros da Grafar são outro prazer indispensável. A gente troca idéias, inventa maluquices e conversa com o pessoal de gerações mais novas".

Tanto a simplicidade quanto o requinte são qualidades evidentes na rotina e nos gostos de Edgar. Mas nada que lhe faça parecer um homem instável, pelo contrário, é muito convicto de suas preferências. Ao falar de música, revela-se um amante de chorinho - que julga como "a tradução mais virtuosa da musicalidade brasileira" ?, e do jazz da década de 40, destacando o violonista cigano Django Reinhardt e o clarinetista Sidney Bechet. Em contrapartida, quando o assunto é comida, "eu gosto mesmo de arroz, feijão e guisadinho". É fã da literatura policial do siciliano Andrea Camilleri e do sardenho Marcelo Fois e visitaria a Itália todo o ano. "Além de linda, tem um povo cortês, receptivo", avalia. Aliás, além do desenho, as viagens parecem ser outra paixão de Edgar: "Exercitar essa atividade de desprender-se de um eixo, de um núcleo, e de suas limitações naturais é maravilhoso, enriquecedor e estimulante". Até hoje, ele assegura que não consegue parar de desenhar enquanto viaja. E que não consegue parar de viajar enquanto desenha.

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