A imparcialidade e o silêncio

Por Tércio Saccol, para Coletiva.net

Recentemente, ao publicar um texto opinativo nas redes sociais, fui surpreendido com a dimensão da repercussão, para bem e para mal, diante da minha assunção de voto no segundo turno. Enquanto alguns se furtaram a criticar (mais o voto do que o texto, é bom dizer), outros se engajaram no apoio, reforçaram minha adesão e/ou mostraram entusiasmo em me ver tomando a frente de um processo.

É importante, diante disso, entender o discurso comum sobre o jornalismo. Ante a irritação que muitas vezes temos sobre o imaginário sobre a profissão, sobre as livres interpretações em relação ao nosso papel e sobre o viés de confirmação que toma de assalto a circulação de informações nessa campanha, penso que é necessário refletir, ponderar e compreender.

Um dos chavões mais comuns exibidos, ostentados e gritados é o da imparcialidade. Não podemos ou devemos culpar o público por propalar esse discurso inócuo. Os próprios veículos venderam essa ideia historicamente, mesmo diante de todos os interesses econômicos e políticos que permearam a sua história. A objetividade, um conceito mais pertinente, embora também questionado/criticado ao que efetivamente se molda na práxis jornalística, não nasceu com a área. Foi desenvolvida nos séculos XIX e XX, junto com a difusão de textos curtos das agências e com a busca pela, pasme, construção de um modelo de credibilidade diante da desinformação nos jornais.

Volto ao meu texto na rede. Desnecessário reafirmar que cada um de nós cresce, lê, se relaciona, anda e percebe fatos, fenômenos, dinâmicas a partir de um ponto de vista. No que eu dizia na rede, reforça que diante dos meus valores históricos, o meu voto seria referendado mais por uma visão de mundo do que por alguma discussão de ordem pontual. Minha escolha, falha, certa ou torta.

Se você quiser fazer uma perseguição, uma caça, um movimento de manada atrás de falhas históricas, posicionamentos político ou esportivo, percepções de valor de um jornalista: vai achar. Elas estão lá. Ninguém é/está alheio a nada. Todos nós temos histórias, anseios, dúvidas, perspectivas, erros, acertos. Devemos em pleno 2018 fazer um manifesto do óbvio, defendendo as parcas liberdades que conquistamos, incluindo a de sermos cidadãos? Será certo o caminho do silêncio diante do cerceamento? Da omissão diante do ode ao massacre ao diferente?

E então? É que na busca incessante por equilibrar fatos, por referendar pontos de vista distintos, por cultuar a objetividade e a falsa imparcialidade, tomamos um ônibus confortável, que vai por um caminho seguro. Trata-se de uma trilha já conhecida, agradável. O problema é que é uma trilha que não nos leva adiante, só dá voltas em torno da nossa própria aldeia.

Em nome do 'dois lados', naturalizamos frases criminosas como 'polêmicas'. Em nome da imparcialidade, oferecemos os dois lados sobre difusão de notícias falsas, como se houvesse um balanço a ser instaurado. Em nome da 'perspectiva', oferecemos o ponto e o contraponto a falas que ferem os direitos humanos. Não se trata de negar, no entanto, a, mais protagonista do que nunca, checagem, a apuração, a atenção à história, ao criticismo e a desconfiança. É, inclusive, ao contrário.

O código de ética do jornalista cita "defender os direitos do cidadão, contribuindo para a promoção das garantias individuais e coletivas, em especial as das crianças, dos adolescentes, das mulheres, dos idosos, dos negros e das minorias", "combater a prática de perseguição ou discriminação por motivos sociais, econômicos, políticos, religiosos, de gênero, raciais, de orientação sexual, condição física ou mental, ou de qualquer outra natureza". Alguém pode dizer que o código de ética carece de efeito prático, mas, a quem serve o jornalismo idealmente, senão ao interesse público e social?

O véu do discurso imparcial é quentinho, mas está rasgado e sujo. Em um contexto onde as mudanças acontecem muito mais rapidamente do que conseguimos assimilar, o desconforto dá lugar a um correr para manter as poucas coisas que sabemos ou sabíamos o lugar certo. De repente, até quem entoou a bandeira da liberdade historicamente se vê alinhado ao ódio. Nós, em veículos tradicionais, independentes, organizações não governamentais, freelancers, não podemos tratar como igual o desigual. Injúria, racismo, homofobia, misoginia, assédio não são polêmicas. Não há aceitação tácita ou implícita aceitável à supressão de liberdades. Não há imparcialidade possível diante da injustiça.

Tércio Saccol é jornalista e professor.

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