Oralidade primária voluntária

Por Letícia Heinzelmann, para Coletiva.net

Diz a sabedoria popular que nunca é tarde para recomeçar, e aos 18 anos não há de ser tarde mesmo. Pois neste ano, em que a entrada na minha graduação em Jornalismo completa sua maioridade, adentro no curso de Museologia. Da Comunicação Social para as Ciências da Informação: certamente essa migração ainda dará muito pano para manga. Mas por ora, conto isso apenas para contextualizar minhas primeiras divagações em sala de aula sobre o momento político atual.

Pierre Levi aponta que a linguagem é um instrumento de memória e de propagação, e se dá pela oralidade primária - em sociedades sem escrita - ou secundária - com escrita. Nesta última, as mensagens podem ser transmitidas indiretamente e consultadas quando necessário, sua propagação não depende da boa memória e capacidade oratória de cada indivíduo, por isso os membros de sociedades letradas ficam livres para pensar de forma crítica e criativa, e assim pode-se, inclusive, desenvolver o contraditório.

Já na primeira, a cultura está totalmente alicerçada na memória e a inteligência é ligada à capacidade de transmitir a mensagem, por isso não há espaço para a criatividade e o pensamento crítico - nada que interfira no exercício de transmitir a memória social sem ruídos. Para permanecer, as memórias precisam ser marcantes, essenciais e repetidas exaustivamente em voz alta. É preciso haver forte conexão entre as ideias, como um bom enredo, relações de causa e efeito, sensação de pertencimento do grupo, exemplos de vida carregados de emoção e, claro, um mito.

Mais alguém pensou na campanha eleitoral do presidente? A publicação referente ao plano de governo de Jair Bolsonaro era enxutíssima, exigindo que o "aprofundamento" sobre cada tema fosse sempre dado oralmente, através de debates (sic), entrevistas e vídeos de campanha. Aí, então, essas ideias eram transmitidas no boca-a-boca pela população, sempre com forte emoção e noção de pertencimento. Peguemos como exemplo o WhatsApp, principal aplicativo de troca de mensagens e sabidamente a mídia que impulsionou a campanha em 2018: cada vez mais uma parcela da população troca o teclado pela ferramenta de áudio.

O Brasil tem quase 12 milhões de analfabetos (Pnad 2016), 44% da população não têm o hábito de ler e a média de leitura não chega a 2,5 livros ao ano. Estaria nossa população, em grande parte, optando por uma espécie de "oralidade primária voluntária"? Até nos cinemas, é crescente o número de salas exibindo filmes dublados - para muito além das películas infantis. O brasileiro que já não lia livros, agora não lê sequer em troca de mensagens nem legendas de filmes e séries. E esse fenômeno não há de ser estritamente local. Não tenho dados de leitura de outros países, mas o fenômeno tecnológico se aplica globalmente, e talvez explique Trumps, Le Pens e Brexits.

Até ontem, eu tentava entender, através de uma observação empática e solidária, o desamparo social que leva populações a novos extremismos e nacionalismos. De repente, me peguei pensamos se estamos não apenas "involuindo". Desde o início da humanidade, nossa espécie passou por mutações: ao começarmos a falar, desenvolvemos a "área de Broca" e nosso maxilar foi ficando cada vez mais desenvolvido; e conforme fomos aprimorando nossa linguagem e capacidades mentais e artísticas nossa testa cresceu para acomodar um cérebro já três vezes maior que no início da evolução. Será que os futuros antropólogos vão encontrar vestígios de uma humanidade com área de Broca muito maior e testa muito menor? Por via das dúvidas, deixo esta provocação escrita, como prova de que havia vida letrada no século XXI.

Letícia Heinzelmann é jornalista e estudante de Museologia.

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