A vergonha que faz história na Comunicação

Por Nando Gross, para Coletiva.net

Nando Gross - Reprodução/Linkedin

O ano de 2022 registra um momento histórico na imprensa brasileira e gaúcha. Pela primeira vez, após a volta da democracia, temos veículos de Comunicação tendo como linha editorial a convocação de um golpe militar, visando impedir a posse do novo presidente, eleito pela maioria do povo brasileiro no último mês de outubro. 

Sempre tivemos contestações ao resultado das urnas por parte de partidos políticos, isto não é novidade no Brasil, quem perde reclama, diz que teve fraude, que o juiz não marcou um pênalti, ou que o código-fonte foi escondido secretamente pelo FBI, seja lá o que for, sempre teve contestações e partidos ingressando junto ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE) pedindo anulação do pleito, mas dentro das regras do jogo democrático. 

Isto era noticiado pela imprensa, como deve ser, mas jamais tivemos empresas de Comunicação clamando através de seus comentaristas, por uma intervenção militar, isto é algo absolutamente inédito e vai deixar para sempre na história esta marca, que envolve o registro de profissionais de Comunicação e empresas tradicionais que trabalharam pelo fim da democracia. Este carimbo será para sempre.

Não se trata de um debate entre direita e esquerda, este dilema não existe, é um falso dilema, a divisão agora não é entre liberalismo ou social-democracia, ou entre estado máximo e estado mínimo, ou sobre privatizações e cargas tributárias, não é isto o que divide a política brasileira hoje, a divisão clara que temos é entre os que defendem a democracia, com todas as imperfeições que ela possa apresentar, mas ainda assim um regime voltado para a busca da vontade da maioria do povo, e de outro lado, aqueles que defendem a dissolução de todas as estruturas democráticas, como legislativo e judiciário, para implantar um regime autoritário, de ultra direita, amparado na força militar e no fanatismo religioso. Democracia ou fascismo (autoritarismo), é isso o que divide o Brasil no momento.

É usada a bandeira da liberdade de expressão para o pedido de uma intervenção do exército, reparem o tamanho do absurdo, foi justamente no regime militar que tivemos um departamento de censura no País, que precisava autorizar as publicações e manchetes dos principais jornais antes de eles serem rodados e distribuídos. 

Quando, em uma ditadura militar, veículos como a Jovem Pan, de São Paulo, ou a Rádio Guaíba, que foi a "rádio da legalidade", conseguiriam fazer campanha a favor de uma intervenção do exército para impedir a posse de um presidente eleito? 

Falam em censura, comentaristas que não fazem a menor ideia de que como é uma censura de verdade. A maior censura, desde a redemocratização, não está em nenhum dos poderes do estado e sim nas empresas, que impõem limites ao trabalho jornalístico, por questões comerciais envolvendo seus patrocinadores, ou quando se posicionam politicamente, decidindo assumir uma candidatura, por exemplo, como fizeram Pan e Guaíba. 

Assistimos também em Porto Alegre, vários profissionais, em outras emissoras nos seus horários específicos, pregando abertamente uma intervenção militar. Parece inacreditável, nunca imaginei que veria isso depois de tudo o que fizemos para conseguir novamente o direito de votar. Como já disse, o debate não é sobre posição política, ser de direita ou de esquerda é o normal em uma democracia, mas os derrotados quererem o uso da força para impedir o resultado das urnas, não faz parte das regras e por isso devem ser retirados do jogo. 

É falsa a ideia de que desde a constituição de 1988, qualquer um pode dizer o que bem entende sem que exista nenhuma responsabilização legal. De onde tiraram isso, sempre teve limites bem claros estabelecidos em lei e quem os ultrapassou teve que se acertar com a justiça. Criticar decisões judiciais é absolutamente natural, mas não é disso que estamos falando, existem pessoas fanatizadas em frente aos quartéis, em absoluto estado de delírio e sendo alimentadas diariamente com as mesmas pautas sobre o vilão TSE e a resistência dos "patriotas" por mais 72 horas. E a responsabilidade social de um veículo de comunicação, o qual é uma concessão pública, onde fica? 

Existem no mundo todo, veículos que são identificados mais com a esquerda ou com a direita, isto não é novidade na imprensa, mas nenhum deles passa o dia pregando o fim do regime do seu país. A imparcialidade é algo sempre ambicionado pela grande mídia, mas em alguns casos o jornalismo sempre terá lado e quando o que está em jogo é a democracia, o jornalismo tem lado, a defesa da democracia.

Neste contexto, amparados por este segmento da imprensa, entra em ação a Sociedade de Engenharia do Rio Grande do Sul, divulgando uma nota em seu site, pedindo um golpe militar e a suspensão da posse de Lula. "Há um permanente descumprimento da Constituição com o golpe perpetrado por membros do Poder Judiciário, convertido em poder supremo de uma ditadura", afirmou a nota assinada pelo presidente executivo, Walter Lídio Nunes, e pelo presidente do Conselho Deliberativo, Luis Roberto Ponte. 

O golpe militar somente se viabilizou em 1964, por ter o apoio da grande imprensa e da sociedade civil, felizmente, hoje o cenário difere, as empresas que apoiam uma intervenção militar são minoria e o máximo que conseguirão é destruir suas marcas e jogar algumas reputações profissionais no lixo. 

O ano de 2022 nunca será esquecido. O uso de concessão pública em comunicação, para negar a democracia e pedir intervenção militar é algo absolutamente inédito na nossa recente democracia e com certeza ainda será motivo de muitos artigos, estudos e publicações. 

 

Nando Gross é jornalista.

Comentários