Amamos odiar G.O.T. juntos e shallow now

Por Letícia Baptista de Castro, para Coletiva.net

Não tem spoiler, pra quem ainda não assistiu ao último episódio ou à última temporada, pode relaxar na poltrona que o trono está a salvo. Aqui, quero falar de uma questão nascida com a notícia veiculada na versão brasileira do jornal El País, dia 17 de maio, um dia antes do final da série Game of Thrones. O título do periódico dizia que a HBO recebeu 900 mil assinaturas para que a produtora refaça a temporada final. Conforme a horda indignada, "os roteiristas demonstraram ser incompetentes". Se aqui coubesse um emoji, seria aquele que revira os olhos. Como não há, traduzo em palavras: os roteiristas, que tiveram a inspiração na obra literária e a consultoria do próprio autor George R.R. Martin, ficaram sete temporadas enganando os fãs e revelaram toda a incapacidade na última, segundo os mimados que preferem exigir uma refação porque não conseguem lidar com a frustração. Sim, a Daenerys ficou bem louca. Talvez uma feminista como eu tenha suas questões, mas é uma obra de ficção, é uma reprodução e, mais do que tudo, eu sou espectadora. E parece que sobre esse lugar, há muito essa turma de quase um milhão esqueceu ou ignorou.

A emergência da cultura digital a partir do desenvolvimento de novas tecnologias de informação e comunicação levanta críticas ao conceito de indústria cultural elaborado por Horkheimer e Adorno nos anos 1940, definindo a nova configuração diante da interatividade, da comunicação aberta e da maior liberdade entre usuários. Até aí temos um acordo, mas precisamos entender um pouco mais o cenário, além da frustração do trono ficar ou não com aquele ou aquela personagem que a maioria simpatiza. O olhar crítico, partindo dessa nova configuração da produção criativa, se revela mais totalitário que a anterior. Isso porque todas as nossas ações no ambiente digital geram informações que podem ser compiladas e organizadas de acordo com algoritmos matemáticos, configurando o chamado "Big Data". São informações que incluem dados sobre preferências, tendências políticas, gênero e perfis de personalidade que levam a tentativas de vigilância integral, sem mencionar a manipulação por meio de propaganda dirigida, sendo política e economicamente muito mais eficaz do que na era da indústria cultural descrita por Adorno.

A gente não está muito acostumado a pensar sozinho nesses tempos de massificação de desejos, mas é interessante propor uma atualização da teoria crítica da sociedade, o que implica compreender essa nova configuração, suas pretensões e contradições. Nesse sentido, me desprendi do "gosto x não gosto" para resignificar o conceito de indústria cultural naquilo que me foi permitido avançar em poucos anos de estudo sobre o assunto quando nem a internet era popular no Brasil. De lá para cá, interpolando estas novas formas de manipulação que sofremos conscientemente (ou nem tanto), ignoramos por absoluto a liberdade imanente da Cultura Digital - o que Pierre Lévy chama de revolução digital. Se estamos mais conectados do que nunca, se estamos mais dispostos a consumir informações (e aí há controvérsias), qual a dificuldade em consumirmos a produção criativa amparados em um olhar crítico e racional das coisas, sem desmerecer aquilo que realmente importa? E o que importa? Importa que podemos gostar ou não, desde que seja uma ação individual. Mas verdade é que, por menor que seja a vontade explícita de opinar, o que vale mesmo é o que "eu penso", desde que seja o que "todo mundo" está pensando. É como um uniforme bem passado, que faz da tropa um exemplo diante de tantas outras que não estavam alinhadas na hora da inspeção. Sim, estou comparando a massificação da crítica a um exército que obedece ordens. Sim, é raso (shallow). Mas se não for assim, desculpem, corro o risco de muitos não entenderem. E a julgar pelos últimos movimentos políticos no Brasil, onde os cursos de Sociologia e Filosofia não são mais considerados importantes para serem "subsidiados" pelas universidades federais, a tendência é piorar.

Antes que isso aconteça, a propósito, Max Horkheimer foi um filósofo e sociólogo alemão, autor de uma teoria crítica da sociedade. O outro alemão citado lá em cima foi o filósofo, sociólogo e até musicista, Theodore Adorno. Ambos eram colegas da Escola de Frankfurt (aquela da teoria social interdisciplinar). Mas se um tinha um foco nas questões da sociedade, o último se debruçou nos aspectos culturais que o capitalismo e a economia possibilitam e no quanto isso interfere na produção cultural, no consumo e no olhar crítico. Eram amigos e eu adoraria ver ambos discutindo o fim de Game of Thrones com essa geração que não sabe perder sem culpar o juiz. O mediador poderia ser Pierre Lévy - aquele francês contemporâneo, também sociólogo e pesquisador em ciência da informação e da comunicação, que estuda o impacto da Internet na sociedade, as humanidades digitais e o virtual.

E sobre o trono, avalio que não importa quem sentou por último, mas como nos frustramos quando o vencedor expõe algumas das nossas características mais íntimas - a passividade, por exemplo. Daí, já vem o inconsciente coletivo do pai da psicologia analítica Carl Jung e, sobre isso, teríamos muito mais assunto, mas agora não dá. Precisamos procurar mais uma série para amar juntos e shallow now.

Letícia Baptista de Castro é redatora.

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