Biografando um encontro com a própria história

Por Letícia Heinzelmann, para Coletiva.net

No início de 2005, eu já era uma experiente estagiária, com quase dois anos em Coletiva.net, passagens pela JÁ Editores e pela comunicação da Santa Casa de Porto Alegre, e me formaria dali a alguns meses. Logo que ingressei na redação, comecei a escrever para a seção Perfil. Na minha primeira entrevista, fui acompanhada pela colega jornalista Tatiane Hickmann Flôres. Gostei da coisa. Tive momentos de insegurança, como quando o entrevistado era de outra área, que eu ainda não entendia muito bem - mas com o tempo acabaria afiada sobre cargos como Mídia ou Atendimento. A experiência na lida e os ensinamentos do mestre Tibério Vargas na Famecos me trariam confiança.

Mas ali, naquela tarde de verão, num ambiente tão familiar, me vi desafiada. Recebi a pauta do nosso editor José Antônio Vieira da Cunha: perfil do mais recente vencedor do Prêmio Esso de Jornalismo, Renan Antunes de Oliveira. Fiquei contente, o conhecia, ele "apadrinhou" minha mãe, a também jornalista Márcia Turcato, em sua mudança para Brasília. Eu tinha 5, 6 anos e moramos um tempo com ele. Lembrava daquele cara gigante, engraçado, de cabelos encaracolados, que mais tarde eu saberia que tinha por hábito ajudar jovens repórteres. Mas ali, tudo que eu sabia sobre sua carreira era que ele tinha acabado de ser premiado pela reportagem publicada no Jornal JÁ. A entrevista foi na redação, com a presença de amigos que fiz quando estagiei lá, entre eles, o editor Elmar Bones. Aqui abrimos um parêntese em forma de parágrafo:

(Eu já havia escrito o perfil do Bicudo meses antes e, sentido na pele o desafio de perfilar alguém próximo. Mas foi uma pauta que eu mesma pedi ao Vieirinha. Estava a um ano de me formar, e ainda não sabia sobre o que escreveria como monografia, quando entrevistei Jorge Polydoro, na revista Amanhã. Ele falou com entusiasmo da Coojornal, a Cooperativa dos Jornalistas do Rio Grande do Sul, e me contagiou. Saí dali disposta a pesquisar o tema e, tendo encontrado muito pouco, sabia que poderia contar com o acervo do empresário - que me mostrou caixas e caixas do periódico Coojornal - e com meu acesso facilitado via Coletiva a personagens dessa história, como o próprio Vieira, que fora presidente da organização. Foi assim que nomes como Elmar, Danilo Ucha e Carlos Wagner, cotados para serem biografados pelo portal, foram entrando para as minhas prioridades.)

Voltando ao Renan, primeira decepção: estava careca. Segunda: longe de ser caloroso, me olhou de cima a baixo, como se julgando se era digna da missão - ele me diria mais tarde, ingrata. Questionou se eu sabia o que estava fazendo e quem eu já havia perfilado. Respondi, orgulhosa, que o Bicudo. Recebemos juntos o olhar de desdém, enquanto ele abria o Coletiva.net e ia me perguntando o que dali eu tinha escrito. Se interessou particularmente por Daniel Herz, e leu o texto inteiro na minha frente, enquanto parecia decidir se me daria a "honra" de entrevistá-lo. Ao fim, perguntou, em tom de denúncia, se eu sabia que o "negócio familiar" citado era uma grande empresa e que só por isso o jornalista podia tratar seu câncer num caríssimo centro norte-americano. Confesso que fiquei atordoada. Depois saberia que eram grandes amigos e o próprio Renan acompanharia a jornada de Herz nos Estados Unidos na busca por seu milagre - ele morreu em 2006, seis anos após o diagnóstico no Brasil da doença intratável, e gerou a matéria "renânica" publicada no Arkansas Times. Ali, respondi que não via a relevância de tal informação. Renan me chamou de chapa-branca, mas nos encaminhou à mesa para começarmos a entrevista: a tal mesa que eu cito no perfil, forrada de uma cópia do diploma do Prêmio Esso, como um jogo americano, enquanto comíamos melancia. Eu também comi.

Retornei à redação de Coletiva embasbacada. Fui contar tudo ao Vieirinha, começando pela parte em que, em meio à entrevista, ele se levantou bradando que não haveria perfil do Renan, pois havia percebido que fracassara na profissão. Meu editor riu das minhas aflições, e sugeriu que o texto abrisse com essa declaração cara-de-pau. Mérito dele.

Agora não sei dizer se foi antes ou depois do perfil ser publicado, mas Nanan (agora esbanjando a intimidade de quem pode ser tratado por apelido) me mandou um e-mail contando que tinha adorado me ver, como se desarmado da sua persona pública, e que eu tinha lugar reservado em seu "heart". Ele costumava dizer expressões em inglês corriqueiramente, como seu bordão "be my guest", com o qual me convidaria algumas vezes para uma temporada em sua casa de Floripa - da qual infelizmente nunca consegui usufruir.

Desde a publicação em janeiro de 2005, foram 15 anos não documentados de história com o grande Renan, que faleceu em 19 de abril último. Das muitas que presenciei, ofereço para este artigo que resgata a história de Coletiva, uma revelação. Uma vez ele tentou me tirar de lá, com um convite para implementar uma redação de jornal em Cabo Verde. Era minha segunda passagem pelo portal, já formada e com status de chefe de redação. Mas topei de cara. Renovei o passaporte, fiz compras de produtos essenciais como protetor solar, que Blanca, mulher de Renan, me contou ser difícil de encontrar por lá, comecei a empacotar as malas... Só nunca contei ao Vieira! Acho que no fundo sabia que haveria um plot twist bem renânico e eu não queria ficar sem emprego. E ele me desconvidou. Sabendo do perrengue que os missionários do jornalismo passaram por lá, acho que ficou com medo da minha mãe se me colocasse numa cilada!

Além dos aprendizados sobre jornalismo e o setor de comunicação em geral, Coletiva.net me deixou de legado um tema de pesquisa e o reencontro com uma figura da minha infância e que dali me acompanharia sempre. Por tudo isso, só tenho a agradecer e desejar vida longa ao portal, para que possa marcar as vidas de muitos focas, como marcou a minha.

 Leca Heinzelmann assina o quarto artigo na sequência comemorativa aos 21 anos de Coletiva.net. Foi estagiária de Coletiva.net de 2003 até se formar em Jornalismo, em meados de 2005. Retornou à empresa em 2006, como assessora de comunicação, sendo em seguida efetivada novamente na redação de Coletiva.net, onde permaneceu por mais um ano. Em suas passagens, atualizou o noticiário do setor, escreveu perfis e participou da cobertura de eventos como Salão ARP, Festival Internacional de Publicidade de Gramado e Congresso de Diários do Interior. Nos últimos anos, tem colaborado com o portal como articulista.

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