Entre Black Mirror e Os Jetsons

Por Rafael Codonho

Participar da Web Summit é como estar num episódio de Black Mirror. Em determinado momento, você se depara com uma coletiva de imprensa - só que o entrevistado é um robô. Ou joga basquete numa quadra repleta de sensores, que vão indicando em tempo real todas as estatísticas da partida, tudo com base em inteligência artificial. Ou vê lá no alto um ringue de boxe com dois oponentes fazendo um duelo de pitches, e a estrutura sobe enquanto o tempo vai se exaurindo. Ou deita de bruços numa maca, colocando um visor que projeta diversas sensações - enquanto, do lado de fora, os outros questionam o que esse parvo está a fazer. Como não poderia deixar de ser, em plena sintonia com a série britânica, há um quê de sinistro nisso tudo. A tecnologia encanta, mas também assusta. No entanto, olhando pelo lado positivo, avanços históricos já surgiram a partir de artefatos esquisitos.

Em outras partes, avançamos para a década de 2060 e nos tornamos conterrâneos d'Os Jetsons. A palestra é sobre carros voadores. Sim: aparentemente, eles estão chegando - e bem antes do previsto pelo desenho que marcou minha infância. Segundo empreendedores que estão à frente desse audacioso projeto, nos próximos cinco anos, já haverá alguns veículos sobrevoando nossas cabeças. Definitivamente, é uma resposta radical àquele que está entre os principais problemas das grandes cidades: o trânsito, que faz o homem perder tempo a cada dia. Os planos se concretizarão? Só o tempo dirá.

Com tantos exemplos, o maior evento de tecnologia e inovação do mundo nos mostra que o futuro está logo ali - queiramos ou não. E a transformação digital se apresenta como aquela pedra gigante que corre atrás de Indiana Jones: ou as empresas aceleram o passo e se adaptam às mudanças trazidas pelo mercado e exigidas pelos consumidores, ou serão esmagadas. Dramático? Pode ser. Mas o consenso entre todos os participantes é de que não há outro caminho. Enfim, o que era opcional até aqui, já não será mais daqui a pouco. Então, faça como o arqueólogo e professor: corra. Se errar durante o processo, sem problemas. O importante é seguir adiante.

Da Europa, e esse processo não é recente, costumam vir os pensamentos que norteiam a humanidade, mesmo que com algum delay. Durante a programação, todos os líderes de grandes companhias se comprometeram com um objetivo comum: a sustentabilidade. Entre um e outro grande negócio que era anunciado, davam o jeito de incluir imagens de grandes blocos de gelo se derretendo ou de imensas montanhas de lixo. Tudo de forma pausterizada, com um ajuste aqui e outro acolá para conferir certa exclusividade. Ao que parece, a militância ambiental é o novo caminho para a salvação das almas. O sentido existencial estacionou aqui. Mas será que não temos capacidade de ir pouco além disso?

Antes que surja o risco de ser mal interpretado, deixo claro o óbvio: é dever de todas as empresas causar o menor impacto possível à natureza. Se possível, causar zero dano. Os tempos mudaram, e hoje temos recursos disponíveis para isso. E que seja punido rigorosamente quem sair da linha, sem exceções. Porém, essa tentativa artificial de ser cool deveria soar o alarme das inteligências. Afinal, as empresas que rezam a cartilha do politicamente correto são as mesmas que, na prática, não respeitam as pessoas - apropriando-se de seus dados para fins escusos. Como já se disse por aí: é mais fácil amar a humanidade do que os homens. Ou, então, cantar louvores ao planeta e desprezar quem habita nele. É o cinismo da nossa época.

A Web Summit também reflete outro aspecto marcante da sociedade contemporânea. Em nome do "debate de ideias", foram chamados dois líderes políticos que pensam igual para discutir determinado tema. Surpresa: concordaram em quase tudo. Palmas, que maravilha!, e viva a diversidade. Espaço para quem pensa diferente? Melhor não correr o risco de a história sair do script.

Vivemos uma espécie de paradoxo: nunca estivemos tão avançados tecnologicamente, mas ao mesmo tempo tão superficiais. Temos todas as ferramentas à mão, porém nos carece o discernimento. Nesse sentido, o formato do evento em Lisboa não poderia ser mais adequado. Foram quatro dias de programação, com uma torrente de painéis - em sua maioria - de não mais do que 20 minutos. E a palestra, invariavelmente, se encerrava sem uma conclusão. Nada mais apropriado: esta é uma geração que quer insights, mas se tornou refratária à profundidade.

Antes que amargura tome conta do nosso coração, chamo atenção para a melhor parte da Web Summit. Num ambiente extremamente competitivo, não param de surgir empreendedores dispostos a melhorar a vida das pessoas. Eles identificam determinada necessidade e colocam toda sua energia para construir uma solução factível. Por vezes, abrem mão de suas carreiras já bem encaminhadas, investem seus limitados recursos, fazem sacrifícios. Essa é a batida das startups, que exigem - antes de mais nada - um ato de fé. Enfrentam uma série de obstáculos, mas seguem em frente, confiantes de que têm uma contribuição a oferecer ao mundo. Com mais ação e menos idealismo. Com autenticidade, como deve ser.  

Rafael Codonho é sócio-diretor da Critério - Resultado em Opinião Pública. Jornalista, esteve na Web Summit a convite da BriviaDez e fez cobertura para o Grupo Amanhã.

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