Me incomodam os moradores em situação de rua

Por Ananda Müller, para Coletiva.net

Sim, eles me incomodam. Despejados sobre calçadas irregulares e despreparadas, os corpos putrefatos em vida me incomodam. Ao passo calmo das manhãs, o quase tropeço em cobertores empilhados sobre jornais e papelões me incomodam.

O odor exalado daquilo que certa vez foi um depositório de humanidade me incomoda. A cor translúcida de um olho um dia castanho hoje cinza que fita minha indiferença me incomoda. Os cães e gatos e ratos que os aquecem me incomodam. Os restos de sobras do que se jogou fora da comida da semana passada me incomodam.

A mão suja e encardida, o cigarro barato, o cachimbo, o álcool, o vício e a demência me incomodam. Andando pelo Centro, Cidade Baixa, Menino Deus, Humaitá, Rubem Berta, essas figuras recorrentes e insistentes me incomodam. Os rostos cadavéricos que confrontam a realidade cômoda dos assalariados que seguem seu rumo a trote de bater ponto me incomodam.

Enquanto repassamos a lista de tarefas a cada nova segunda, o trajeto é invadido pela imagem da nossa ineficiência como sociedade. Entre um sinal vermelho e uma faixa de segurança desrespeitada, a ineficácia do poder público se desnuda no asfalto. Dezenas, dúzias, centenas e milhares, todos gritando em uníssono silêncio: "nós estamos aqui".

Os moradores em situação de rua me incomodam porque invadem meus pensamentos antes de dormir, aquecida e de barriga cheia. Eles me incomodam quando chove, quando o vento sopra nas persianas, quando o frio me corta o lábio forrado de bepantol. Essa massa de gente me incomoda quando empurra seus trastes e tralhas em carrinhos improvisados a tração animal do bicho-homem.

Eles me incomodam porque me mostram que falhamos. Eles me incomodam porque comprovam que somos coniventes. Eles me atrapalham, pois não deixam escapar da minha retina a imagem de quem passa e vira o rosto para a vitrine ao lado. Entre um cardigã e um pulôver, a meia rasgada e encardida de quem perdeu até o último fio de dignidade.

Ora, eles estão ali porque querem, porque gostam, porque decidiram. Determinaram na essência e na origem que o caminho seria incerto e o fim, abreviado. O adeus derradeiro em algum banco de praça milimetricamente adaptado por grades e ferros para evitar o descanso de um corpo acabado.

Essa gente me incomoda porque me deixa amargo o gosto do chocolate-quente. Azeda o sabor do arroz e feijão. Esse povo manchado pinta de preto o céu rajado das manhãs de julho. Mas não há de ser nada: amanhã começa tudo de novo e vou orar a Deus-Pai que os tire daqui, e leve para algum lugar melhor - bem longe de mim e da minha retina.

Os moradores em situação de rua me incomodam porque não nos deixam esquecer - por um mísero dia! - que somos uma sociedade doente de alma.

Ananda Müller é jornalista na Rádio Guaíba.

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