Neoludismo à vista?

Por Eugênio Lumertz, para Coletiva.net

Eugênio Lumertz - Reprodução

A Revolução Industrial é sempre lembrada como um marco na história. De fato, foi a partir da mecanização dos sistemas produtivos que a humanidade começou a acelerar a produção de bens, tornando-os cada vez mais acessíveis para todos em uma escala que seria impossível de ser feita por mãos humanas.

No entanto, nem todos estavam felizes com a implantação das máquinas nas fábricas. Se já havia condições deploráveis de trabalho e uma carga horária exaustiva, os trabalhadores na Inglaterra passaram a lidar com a diminuição salarial. Um tecelão recebia cerca de 33 shillings em 1795 e, por volta de 1815, o mesmo tecelão recebia 14 shillings.

Diante desse cenário, os operários entenderam que as máquinas, além de estarem roubando os empregos dos seres humanos, contribuíam para a redução salarial do trabalhador. E passaram a promover ataques, invadindo as fábricas e destruindo todas as máquinas que conseguissem. Esse movimento ficou conhecido como ludismo, e faz referência à Ned Ludd - na verdade, um personagem fictício criado pelos trabalhadores para difundir a causa.

A ação dos ludistas gerou repressão imediata. Doze mil soldados do Governo Inglês foram colocados para reprimir a ação dos ludistas, e uma lei de 1812 transformou a destruição intencional de máquinas em crime capital e, portanto, punível com a morte. A repressão enfraqueceu o movimento a partir de 1816, levando-o ao ostracismo.

Nos últimos 200 anos, dezenas de profissões foram extintas ou tiveram seu salário reduzido em função do avanço tecnológico. O acendedor de lampiões, as telefonistas, o operador de mimeógrafo, só para lembrar alguns. O surgimento do Uber chegou a ressuscitar os ideais do ludismo através dos protestos violentos dos taxistas, mas o progresso novamente venceu em nome da livre concorrência. E o sumiço de outros empregos segue acelerado, embora a gente perceba somente aqueles que nos impactam diariamente, como os caixas de grandes lojas substituídos por totens de autoatendimento.

Bom, mas o que há de comum entre todas essas profissões? Basicamente, elas são exercidas por pessoas que pertencem às classes com menor grau de instrução na sociedade. Existe uma crença de que elas migram facilmente de profissão, à medida em que podem ser treinadas para uma nova tarefa que não exija muito conhecimento. E assim, a roda continua girando normalmente - pelo menos era assim até hoje. 

Antes restrita ao universo dos desenvolvedores, há cerca de três meses a inteligência artificial chegou ao cotidiano das pessoas por meio do ChatGPT. Pela primeira vez, estamos realmente compreendendo a noção do que ela é capaz de fazer. O ChatGPT é um modelo de linguagem treinado para entender e gerar texto em linguagem natural, e pode ser usado para fins educacionais, de entretenimento ou informativos. Estamos vivendo na fase de encantamento, experienciando a magia - tanto que a ferramenta atingiu em tempo recorde 100 milhões de usuários mensais ativos. No entanto, o ChatGPT é só a ponta do iceberg.

A inteligência artificial está avançando em uma velocidade impressionante em todas as áreas de conhecimento humano. Já fazem alguns diagnósticos mais precisos do que um médico faria. Elaboram pareceres jurídicos mais convincentes do que um advogado escreveria. Ou podem desenvolver projetos de edificações de forma mais eficiente do que um engenheiro conceberia. E cada vez mais, farão tudo isso em escala exponencial, tempo recorde e custo ínfimo.

Isso só para ficar nos exemplos das profissões mais tradicionais da sociedade. Porque outras dezenas, talvez centenas, serão afetadas pelo avanço da tecnologia artificial de forma avassaladora e preocupante. Porque a tecnologia, pela primeira vez, ameaça o emprego de uma camada da sociedade que nunca se preocupou em ser substituída. Na verdade, mais do que uma ocupação em si: seu próprio sentido de ser produtivo está ameaçado, no momento em que perceber que é supérflua, como já apontou Yuval Noah Harari sobre o surgimento da "classe dos inúteis" até 2050 (alguns já dizem que poderá ser antes deste prazo).

Por isso, vislumbro o surgimento do neoludismo, que se tornará um movimento frequente nos próximos anos. Agora, não será mais baseado na destruição das máquinas, até porque não é possível "quebrar uma nuvem", mas na tentativa de impor limites ao desenvolvimento da inteligência artificial e de estabelecer sanções de seu uso em áreas do conhecimento que ameacem as profissões que sempre mantiveram seu status quo na sociedade.

Porém, assim como seus antecessores, os neoludistas provavelmente não terão sucesso em sua empreitada de deter a inteligência artificial. Se no passado os soldados ingleses oprimiram a revolta dos operários, não será possível regulamentar ou controlar algo que está se tornando descentralizado: o que antes era restrito a instituições com grandes conjuntos de dados, agora está nas mãos de indivíduos que podem acessar e interagir com modelos de aprendizado profundo, em qualquer lugar do planeta. Além disso, o processo burocrático de discussão e criação de leis é tão moroso que qualquer tentativa de normatização se tornaria obsoleta antes mesmo de entrar em vigor.

O neoludismo, no final das contas, será só mais uma manifestação do sentimento intrínseco ao ser humano diante do desconhecido: o medo. E para vencer esse medo, temos que entender a inteligência artificial e não tratá-la como uma ameaça. 

Eugênio Lumertz é diretor de Criação da Moove

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