Os 124 anos de um jornal

Por Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite

No ano de 2013, comemorou-se o centenário de morte de Francisco Antônio Vieira Caldas Júnior (1868-1913), responsável pela criação do jornal Correio do Povo, em Porto Alegre. Em 1º de outubro de 2019, o jornal completou 124 anos de fundação, sendo considerado o mais antigo, ainda, em circulação na capital gaúcha, e um dos principais veículos de comunicação do nosso Estado e do Brasil.

Filho do bacharel Francisco Vieira Caldas e da poetisa Maria Emília Wanderley Caldas, o futuro jornalista e empresário Caldas Júnior nasceu em Sergipe (SE). Em 1872, sua família se mudou para Santo Antônio da Patrulha e seu pai assumiu o cargo de juiz municipal.

No ano de 1880, sua família se mudou para Porto Alegre e o jovem Caldas Júnior passou a estudar no Colégio São Pedro. Aos 17 anos, começou a trabalhar como revisor e noticiarista do jornal do Partido Liberal A Reforma (1869-1912), no período de 1885 a 1888, tendo sido também o seu diretor até o ano de 1891.

O jornal A Reforma - fundado pelo líder maragato Gaspar Silveira Martins (1835-1901) - opunha-se à política centralizadora do Partido Republicano Rio-grandense (PRR), liderado por Júlio Prates de Castilhos (1860-1903) e um dos fundadores do jornal A Federação (1884-1937). Ambos os periódicos, por meio de seus redatores, digladiavam-se no campo ideológico. Caldas Júnior, também, exerceu o cargo de redator-chefe no Jornal do Comércio no período de 1891 a 1895. Neste ínterim, casou-se com a filha do escritor Aquiles Porto Alegre (1848-1926), nascendo dessa união Fernando Caldas.

Nova proposta na imprensa gaúcha

Durante a Revolução Federalista (1893-1895), seu pai, que era maragato (lenço vermelho), foi aprisionado pelos pica-paus (lenço branco) - adeptos do Partido Republicano Rio-grandense (PRR) - tendo sido fuzilado em 1894 na Ilha do Desterro (SC). Apesar dos problemas, após a morte da figura paterna, Caldas Junior conseguiu levantar um pequeno capital de 20 contos de réis junto ao comércio porto-alegrense e investiu na criação do seu jornal, cujo título escolhido foi Correio do Povo. Fundado em 1º de outubro de 1895, o jornal trazia uma proposta de neutralidade, afastando-se do furor das discussões no âmbito político-partidário. Até aquele momento, desde a criação do primeiro jornal gaúcho, O Diário de Porto Alegre (1827), o jornalismo de cunho político dominava o cenário da imprensa local.

A população, que se refazia de uma guerra fratricida, entre pica-paus e maragatos, aprovou, com agrado, a criação do novo periódico, cuja proposta era a de informar, evitando os excessos de caráter opinativo e partidário. O Correio do Povo, em formato standard (grande), apresentou-se aos leitores como "órgão de nenhuma facção, que não se escraviza a cogitações de ordem subalterna". Segundo o jornalista Walter Galvani, o Correio do Povo foi um marco divisor na história do jornalismo gaúcho, pois, ao assumir o caráter empresarial, iniciou-se uma nova fase na imprensa, que adentrava no século 20. Galvani, entre outras obras, é autor do livro "Um Século de Poder / Os bastidores da Caldas Júnior" (1995), publicado pela Mercado Aberto.

O Correio do Povo, em um determinado período, era chamado o "róseo", devido à cor de suas páginas. Na realidade, havia uma crise econômica que atingiu o papel, sendo utilizado, então, um de menor qualidade e de baixo custo que tinha essa tonalidade. A oralidade e o imaginário da época propagaram que o jornal, por ser apartidário, havia optado pela cor rosa, pois esta representava a mistura do lenço branco (pica-pau) - Partido Republicano Rio-Grandense (PRR) - com o lenço vermelho (maragato) do Partido Federalista (PF), resultando na cor rosa. A rivalidade de ordem ideológica existente entre as duas facções, resultou num confronto armado, que ficou conhecido como Revolução Federalista (1893-1895) ou da Degola. Totalizando 10 mil mortes, este episódio foi o mais sangrento no Rio Grande do Sul.

Modernidade

Em 1910, ano em que o Cometa Halley cruzou novamente o céu, o Correio do Povo comprou a primeira rotativa no Estado, da marca Marinoni, aumentando, de forma substancial, a sua produção e qualidade. Conforme o pesquisador Francisco Rüdiger, em 1895 havia a produção de mil exemplares, que, ao encerrar o primeiro decênio o século 20, já atingia 10 mil.

Além de ser destacada figura da nossa imprensa, Caldas Júnior era também poeta e assinava suas poesias com o pseudônimo Tenório, tendo sido um dos fundadores da Academia Rio-Grandense de Letras (1901). Em 9/04/1913, a morte de Caldas Júnior causou preocupação quanto ao futuro do jornal, porém a dedicação de sua segunda esposa, Dolores Alcaraz Caldas, manteve a família unida, evitando que a empresa encerrasse as suas portas.

O Almanaque 

Perfazendo 66 edições, o Almanaque do Correio do Povo trouxe ao leitor os melhores artigos e reportagens, além de anúncios publicitários, tornando a sua leitura prazerosa, variada e rica em conteúdo. Nomes importantes das letras e da nossa historiografia colaboraram para o seu sucesso, como Erico Veríssimo (1905-1975), Dante de Laytano (1908-2000), Arthur Ferreira Filho (1899 - 1996), Walter Spalding (1901-1976), Archimedes Fortini (1887-1973), Lothar Hessel (1915-2007), Nilo Ruschel (1911 - 1975), Mário Quintana (1906-1994), Paulo Xavier (1917-2007), Paixão Cortes (1927-2018), Sérgio da Costa Franco, entre tantos outros nomes importantes na esfera cultural. A última publicação do Almanaque do Correio do Povo ocorreu em 1982, encerrando uma trajetória de importante contribuição no cenário cultural do Rio Grande do Sul.

Breno Caldas

Entre tantos nomes que ajudaram a construir a história do tradicional Correio do Povo, destaca-se o filho Breno Caldas (1910-1989) que foi seu diretor de 1935 a 1984, período no qual a empresa se desenvolveu e inovou. Durante o tempo em que ele esteve à frente da empresa, é importante ressaltar o sucesso do Caderno de Sábado (1967-1981), constituindo-se numa das melhores produções culturais no Estado; a Folha da Tarde (1936-1984), que, na forma tabloide, foi um enorme êxito editorial; a Folha da Manhã (1969-1982), que se destacou pela moderna diagramação e o suplemento Letras & Livros (1981). Este último tratando de temas literários.

O nosso poeta Mário Quintana (1906-1994) começou a colaborar no Correio do Povo em seu Caderno H, em 1953, e o grande Manoelito de Ornellas (1903-1969), com sua famosa coluna Prosa das Terças, encantou os leitores no período de 1940 até 1960. Durante a direção de Breno Caldas, ainda foram criadas a Rádio Guaíba (1957) e a TV Guaíba (1979) A primeira, em 1961, passou para a história, por liderar a Rede da Legalidade, criada por Leonel Brizola (1922-2004) em defesa da posse de João Goulart (1918-1976) na presidência do Brasil, após a renúncia de Jânio Quadros (1917-1992).

No ano de 1984, Breno Caldas enfrentou uma crise econômica que resultou no fechamento das portas da sua empresa jornalística. A população ficou bastante surpresa com o término de seu tradicional jornal, que, naquela ocasião, completava 89 anos de circulação. Em maio de 1986, o jornal voltou a circular graças ao esforço do empresário Renato Bastos Ribeiro, recentemente falecido. O Correio do Povo é o pioneiro, na América do Sul, ao utilizar o sistema de transmissão digitalizada via satélite.

Desde 2007, o Correio do Povo faz parte da Rede Record. O sonho do seu fundador Caldas Júnior permanece vivo há 124 anos. Já dizia uma senhora idosa: "Se não saiu no Correio do Povo, não é verdade".

Carlos Roberto Saraiva da Costa Leite é pesquisador e coordenador do setor de Imprensa do Museu da Comunicação Hipólito José da Costa.

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