Tirar a foto e ir embora?

Por Luiz Antônio Araujo, para Coletiva.net

A imagem da criança sudanesa prostrada pela fome, a testa colada ao solo, enquanto é observada à distância por um abutre é a Guernica do final do século 20. Foi registrada em 1993 pelo repórter sul-africano Kevin Carter nas proximidades de um centro de distribuição de mantimentos no hoje Sudão do Sul. Rendeu a seu autor um Prêmio Pulitzer de Fotografia e provavelmente contribuiu para subtrair-lhe a vida.

Veterano de muitas coberturas de conflito, assombrado pela morte de um colega em serviço e deprimido, Carter suicidou-se 16 meses depois de apontar a lente para a criança faminta. Seus últimos meses de vida foram ocupados por entrevistas e debates nos quais passou da condição de mensageiro à de acusado.

Muitos queriam saber o que Carter havia feito para socorrer a criança da foto e qual havia sido seu destino. Abalado, o fotógrafo não soube responder de forma categórica. Mais tarde, colegas afirmaram que ele teria espantado o abutre. Sua história está contada no livro 'O Clube do Bangue-bangue', vertido para o cinema em 2010 sob o título 'Repórteres de guerra'.

Numa das inúmeras vezes em que exibi a fotografia em sala de aula, uma aluna fez uma pergunta que sintetiza boa parte dos dilemas da reportagem em nosso tempo: "Ele tirou a foto e foi embora?". Fez-se silêncio na turma habitualmente barulhenta de calouros de Jornalismo.

Confrontados com censura, ameaças, prisões e morte, muitos jornalistas dão-se por satisfeitos, nestes tempos bicudos, se puderem cumprir a missão para a qual são pagos: a de contar a história. Em momentos como o que vivemos, porém, tornam-se mais vitais para quem se propõe a tão importante ocupação qualidades como sensibilidade, empatia e compaixão. A morte da menina Ágatha Félix, de oito anos, pela Polícia Militar do Rio de Janeiro, gerou comoção nas redes e repercutiu fortemente na imprensa. Coube a Cecília Oliveira e Luiz Antonio Simas, no Intercept Brasil, trazer à baila um dado ainda mais chocante: Ágatha foi a nona criança morta pela PM fluminense neste ano. Diante dessa tragédia, não se pode tirar a foto e ir embora.

Luiz Antônio Araujo é jornalista, escritor e professor de Jornalismo da Famecos.

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