Perda que aperta o coração

Por Núbia Silveira

Faltam poucas horas para que se complete um dia da viagem do João Souza para a eternidade. Não sei se há outra vida, outro local de aconchego entre amigos e familiares. Se houver, tenho absoluta certeza de que ele foi recebido, alegremente, com palmas, assobios, tapinhas nas costas, muitos abraços e beijos. O reencontro com o filho Carlos, os amigos e amigas João Aveline, Hermelindo Paes de Macedo, Clóvis  Ott, Xico Vargas, Carlos Urbim, Terrinha, Floriano Corrêa, Jefferson Barros, Sandra Garcia, Eunice Jacques e Laila Pinheiro, entre tantos outros e outras, só pode ter sido ao redor de uma boa mesa, com pratos gostosos, uísque de muito mais do que 30 anos, envelhecido em barril de carvalho, e um excelente vinho tinto.

Uma festa para ninguém botar defeito, no estilo mais apreciado por João que, por 54 anos, foi muito mais do que um amigo ou um irmão. Foi meu confidente, orientador nas horas de dúvidas, cuidador, revisor das bobagens que escrevi, segurança, evitando que eu não me quebrasse nem sofresse mais do que o necessário na hora das quedas. Enfim, uma das minhas maiores referências pessoais e profissionais, em quem eu podia confiar de olhos fechados, ser eu mesma e falar abertamente sobre tudo.

Quem não conheceu o jornalista João Souza perdeu a oportunidade de conviver com uma pessoa discreta, serena, digna, bem humorada, responsável, líder, correto, honesto, defensor de amigos e colegas. Tenho muitas histórias para contar sobre o João, que leva com ele muitos anos da minha vida. Anos de grandes descobertas, esperanças, aprendizagens, boas gargalhadas e muita felicidade. 

Conheci o De Souza (João Borges de Souza), como muitas vezes o chamei, em 1968, quando entrei no Jornalismo. Eu era repórter do Diário de Notícias e ele assessor (dos bons) de imprensa da Secretaria da Saúde. Ficamos amigos de cara. Lembro dele me acompanhando, sorridente como sempre, até o elevador, na hora da despedida.

Um ano e meio depois, ele avalizou minha entrada na então Companhia Jornalística Caldas Jr. que dali, no máximo, dois meses lançaria o seu terceiro jornal: a Folha da Manhã. Eu havia sido convidada pelo chefe de reportagem da Rádio Guaíba, que assumiria o mesmo cargo na FM. Florianão, Floriano Corrêa, me pediu que fosse até o departamento de notícia da Guaíba, dirigido pelo Capitão (Erasmo Nascente), que seria o diretor de redação do novo jornal, para tratar da contratação.

Como qualquer jovem daquela época, no início de seus 20 anos, fui até lá usando um minissaia. Ou quase isso. Sentei em frente ou ao lado do Floriano, cruzei as pernas e ficamos conversando. Dei azar. O Florianão tinha fama de mulherengo. O Capitão ao me ver "de pernas de fora"concluiu, apressadamente, que eu era "caso" do chefe de reportagem e vetou minha entrada na maior empresa de comunicação gaúcha naquela época. Coube ao João desfazer o mal-entendido e garantir ao diretor, como ele gostava de lembrar, rindo muito, que eu era "uma moça de família". Fui admitida e fiquei amicíssima do Capitão e de sua mulher, a dona Maria.

A história que vou contar agora mostra bem o caráter deste querido amigo que nos disse adeus na manhã de ontem, segunda-feira, 13. Na segunda metade dos anos 1970, nós trabalhávamos na Folha da Manhã, então dirigida por Walter Galvani. Um determinado dia (não lembro a data), Galvani voltou de uma reunião com Breno Caldas, dono e diretor da CJCJ, e informou ao João Souza, editor de Política, que o "doutor Breno" queria a demissão do repórter Paulo De Tarso Riccordi, acusado pelo então ministro Paulo Brossard de deturpar a sua fala. João não se irritou, não perdeu a calma, nem levantou a voz contra tamanha injustiça. Serenamente, abriu uma das gavetas de sua mesa, pegou a fita cassete com a gravação da entrevista e foi mostrá-la ao dono da empresa. O repórter está aí para confirmar que seu editor não se acovardou, naqueles tempos de governos militares, e o defendeu, impedindo que ele fosse demitido. João era assim: tomava as atitudes corretas sem nenhum estardalhaço ou autopromoção,

As histórias são muitas e boas. Ficam para uma outra hora, quando a dor da perda não estiver mais apertando tanto meu coração.

Adeus meu amigo-irmão. Vai em paz e seja feliz nesta tua nova jornada.

Núbia Silveira é jornalista.

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