A ignorância é uma bênção

Por Roger Lerina

Gosto de sacar esse dito ironicamente quando deparo com alguma novidade cujo caráter me desanima, ou uma informação reveladora exasperante ou ultrajante, às vezes uma inconfidência constrangedora repartida comigo à minha revelia. "A ignorância é uma bênção", retruco divertidamente para o interlocutor diante daquela notícia que me derruba os butiás do bolso, fingindo preferir não saber o que se passa ao meu redor. Nos últimos tempos, porém, a frase vem sendo assumida ao pé da letra por cada vez mais pessoas, especialmente no Brasil: a estupidez está na moda e desconhecer as coisas não é mais motivo de vergonha - ao contrário, arrota-se burrice hoje em alto e bom som. "A ignorância é uma bênção!", orgulham-se sorridentes, muitos pontuando a declaração com um amém.

A onda conservadora que vem se erguendo em várias partes do mundo, inclusive em países há muito tidos como seguros rincões dos valores iluministas, encontrou no Brasil de alguns anos para cá uma circunstância favorável - a ponto dessa maré cheia engolir agora o governo federal e trazer à tona algumas de suas mais deploráveis faces: o ódio às minorias e aos grupos sociais vulneráveis, o desprezo pelas políticas voltadas aos despossuídos, o elogio da violência institucional, o puritanismo moral, a sujeição das instâncias seculares à vigilância da religião, o anti-intelectualismo, a animosidade com relação às artes. Apesar de sempre chocantes e desanimadoras, essas e outras manifestações obscurantistas não são mais novidade entre nós, infelizmente - pior: corre-se o risco de naturalizarmos esse estado de coisas e anestesiarmos nossa indignação, tamanha a eloquência, a variedade e a recorrência desses episódios, que reforçam o cenário trevoso pelo qual passamos.

Como não poderia ser diferente, esse quadro atinge também a gestão pública da cultura. Nestes primeiros dias de novos governos no Brasil, dois movimentos administrativos apontam encaminhamentos radicalmente opostos para a área: em nível federal, o Ministério da Cultura foi extinto, virando secretaria subordinada ao Ministério da Cidadania; aqui no Rio Grande do Sul, a Secretaria de Estado da Cultura foi recriada, depois de ter sido fundida pelo governo anterior em uma pasta que juntava ainda Turismo, Esporte e Lazer, a Sedactel. A priori, salvaguardar o status de ministério ou secretaria autônomos para determinado tema não é garantia de que esse assunto receberá um tratamento adequado - incerteza em particular corriqueira no Brasil.

Já estamos cansados de assistir à criação - e à extinção - de órgãos cuja missão era cuidar com atenção de determinada questão, mas cuja existência foi apenas pífia, supérflua ou serviu apenas para criar cargos como moeda de barganha política ou desviar recursos dos cofres públicos. A competência dos gestores, o respaldo político do governo às administrações específicas e o montante de verbas disponível são fatores tão ou até mais importantes para o êxito de uma pasta do que o fato de ela ser ou não distinguida como um ministério ou uma secretaria exclusivos.

Vale ainda lembrar que muitos países economicamente desenvolvidos e com robustas atuações na cultura e nas artes não possuem ministérios próprios nessas áreas - o que não impede, no entanto, que seus governos eventualmente atuem exercendo políticas de apoio e financiamento ao setor, por meio de diversos órgãos e mecanismos de incentivo. No Brasil, porém, é difícil não lamentar a extinção do Ministério da Cultura: criado em 1985 com o fim da ditadura militar, o órgão federal colocava a cultura e as artes no primeiro escalão das preocupações nacionais, conferindo-lhes um valor simbólico tão fundamental quanto a própria redemocratização política, da qual foi contemporâneo.

A despeito da inegável autoridade institucional que um ministério autônomo impõe, dos recursos humanos, administrativos e orçamentários que naturalmente lhe são voltados e da efetiva relevância econômica de sua atuação - recente estudo da Fundação Getúlio Vargas apontou que, a cada R$ 1 investido em projetos culturais financiados por meio da vilipendiada Lei Rouanet, R$ 1,59 retornam à economia por meio da movimentação financeira que geram -, manter a cultura em nível ministerial deveria ser acima de tudo um imperativo político. Independentemente da coloração ideológica e partidária no poder, a defesa do Ministério da Cultura - deferência que não exclui eventuais mudanças de diretrizes consideradas necessárias pelos administradores - deveria ser uma afirmação de todo mandatário de compromisso com a identidade brasileira e com o patrimônio cultural e artístico do país, de resto nosso bem maior enquanto nação.

Já no Rio Grande do Sul, a restituição da Secretaria de Estado da Cultura é por si só uma notícia bem-vinda. O otimismo quanto aos rumos institucionais da área por aqui ganhou reforço com os anúncios dos nomes dos primeiros gestores escolhidos pela secretária Beatriz Araujo, não necessariamente vinculados ao partido do governo - alguns inclusive identificados com a oposição, outros ainda mantidos nos cargos que exerciam na gestão anterior, em reconhecimento ao trabalho que vinham desenvolvendo. Mais uma vez, estamos no campo das simbologias: em suas primeiras expressões, a rediviva Sedac acena com um gesto inclusivo e generoso, voltado para o trabalho conjunto em prol da arte e da cultura - tão necessário em tempos de cizânia e filistinismo.

Tomara que tanto Henrique Medeiros Pires, secretário especial da Cultura, quanto a secretária estadual da Cultura consigam fazer boas administrações e implementar ações virtuosas na área, apesar da conjuntura política adversa - particularmente no caso do governo federal. Em tempos nos quais gente supostamente instruída jacta-se da própria imbecilidade - como é o caso daqueles que desqualificaram Beatriz Araujo porque a secretária teria se posicionado contra os ataques à exposição "Queermuseu" -, a verdadeira bênção é poder contar com quem ainda defenda o conhecimento, a cultura e a arte.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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