Cabíria ou Gelsomina?

Por Marino Boeira

Todo mundo tem o seu anjo da guarda, inclusive nós, os ateus. O meu está registrado sob o número 99995557890079955123, mas não é, exatamente, um anjo, e sim, uma anja.

Sim, os anjos têm sexo. Ela conversa comigo todas as noites, quando, tecnicamente, estou dormindo.

Na noite passada, ela me disse que foi agraciada com a medalha Jesus, Maria, José por bons serviços prestados.

- Que serviços foram estes?

- Mantê-lo são, salvo e pensante, depois de tantos anos.

- Quer dizer que, se ainda estou vivo e capaz de fazer algumas provocações no Facebook, é por sua causa?

- Em boa parte sim. Lembra quando você ainda era um bebê e teve crupe e todo mundo achava que irias morrer?

- Claro que não lembro, mas minha mãe sempre falava disso.

- Fui eu que fiz o Dr. Jaime, casualmente, fazer uma visita à sua casa e salvar sua vida.

- Lembra aquela sua primeira viagem ao Rio?

- Claro que lembro. Era um DC3 da Panair. O avião saiu de Porto Alegre, de manhã cedo, com escalas em Florianópolis, Curitiba e São Paulo e só chegou ao Rio de noite.

- Você lembra o porquê?

- Ele estragou em Florianópolis.

- Pois aquele avião estava agendado para cair antes de chegar a Curitiba. Fui eu quem cochichou no ouvido de um mecânico que tinha problemas num motor.

- Que mais?

- Você queria ir no Batalhão Suez para o Egito e eu lembrei ao capitão que você era meio comunista.

- Lamentei sempre não ter ido.

- Estava prevista a sua morte num conflito com uma patrulha de Israel e foi por isso que consegui cortar seu nome da lista dos convocados.

Eu pensava nela como Cabíria, por causa do filme do Fellini, com a Giuletta Masina fazendo o papel daquela prostitua ingênua e bondosa.

Ela me surpreendeu, dizendo que conhece o filme, mas que gosta mais daquele outro, também com Giulleta em que ela faz a Gelsomina.

- Mas lá em cima vocês curtem também esses filmes italianos?

- Claro. Aquele pessoal todo, o Fellini, a Giuletta, o Antohy Quinn e o Richard Basehart vivem lembrando cenas do filme La Stradda.

- O Felinni está lá também? Depois de La Dolce Vitta achei que ele ia direto pro Inferno.

- Os tempos são outros, e o Homem há séculos que largou aquele viés punitivo.

Então é assim, mesmo sendo ateu, eu tenho uma anja da guarda, que eu chamava de Cabíria, mas agora tenho dúvidas se devo chamar de Gelsomina.

A minha anja diz que tanto faz.

Eu gostaria de ter uma definição dela, mas na noite passada ela estava muito confusa. Ela me acompanha desde que nasci, mas já servia minha família há mais tempo, pois, como todo mundo sabe, os anjos são eternos. Eu soube que durante muito tempo ela deu proteção a membros da família da minha mãe, os Webers e o Saars, que falavam mais alemão do que português. Como a noção de tempo e espaço para a minha anja é diferente do que é para nós, às vezes, ela se pega falando em alemão comigo ao me advertir sobre certos perigos.

-  Hüten Sie sich vor Getränken und Frauen.

Deve ser de novo sobre bebidas e mulheres, temas que ela gosta muito de falar.

 

Achei melhor deixar então para outro dia (ou à noite, durante meus sonhos) a decisão se vou chamá-la de Cabíria ou Gelsomina.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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