Clint Eastwood, o fora da lei

Por Roger Lerina

Prestes a completar 89 anos, Clint Eastwood é um monumento do cinema moderno. Com uma filmografia de mais de 70 filmes atuando e de 40 títulos atrás das câmeras, o astro norte-americano solidificou ao longo de décadas sua persona cinematográfica - primeiro como ator, de tipo durão e individualista que enfrenta qualquer parada em nome de seus valores, depois na direção, de artista com um olhar sensível para os fracassados e esquecidos pelo sistema. Pois o veterano Eastwood retorna às telas agora com "A Mula", novamente atuando e dirigindo - desta vez, porém, encarnando um personagem em uma situação bastante diversa da moldura virtuosa com a qual costuma enquadrar a trajetória de seus protagonistas.

Em "A Mula", Eastwood é Earl Stone, um nonagenário que vive do cultivo lírios e que está à beira da falência porque não conseguiu acompanhar a modernização do negócio trazida pela internet. Afastado há anos da família, o vaidoso homem - que diz amar as flores por causa de sua beleza exuberante e efêmera - sempre preferiu as distrações da rua à domesticidade do lar. "Persona non grata" com um extenso histórico de ausências em eventos familiares, ele é corrido pela ex-esposa (a ótima atriz Dianne Wiest, ganhadora de dois Oscar de coadjuvante por filmes de Woody Allen) e pela filha (Alison Eastwood, filha do diretor) do almoço pré-nupcial da neta (Taissa Farmiga) - não sem antes receber de um dos convidados uma misteriosa proposta de emprego.

Sem ter mais para onde ir depois de ser despejado de casa por conta das dívidas, Earl resolve aceitar a oferta - e descobre que sua missão é no mínimo singular: sem nenhuma multa em seu histórico de motorista, com a inofensiva aparência de cidadão idoso branco, Earl é um tipo acima de qualquer suspeita, ideal para transportar em sua camionete pelos Estados Unidos drogas para um cartel de traficantes mexicanos. O improvável chofer se dá bem no ofício e engata uma série de viagens, ganhando cada vez mais dinheiro e confiança de seu "patrón" (Andy Garcia). Paralelamente, um agente do FBI (Bradley Cooper) busca traçar as rotas das mulas de drogas e descobrir a identidade daquele misterioso e já famoso transportador, apelidado de "Tata".

"A Mula" é baseado na história real de um veterano da Segunda Guerra que, nos anos 1980, tornou-se o mais velho e prolífico transportador de drogas do Cartel de Sinaloa - no filme, Earl é um ex-combatente da Guerra da Coreia. A ambiguidade e a complexidade da figura central é um dos destaques de "A Mula": Earl Stone sabe que está se metendo com o crime, mas ao mesmo tempo é um sujeito divertido, agradável e justo; foi um desastre como marido e pai, porém é generoso com os amigos e colaboradores e tenta se redimir ajudando a neta; gosta da boa vida e das mulheres, sem, no entanto, deslumbrar-se com os confortos da vida moderna.

A construção de personagens multifacetados e, às vezes, contraditórios, nem sempre do lado certo da lei, não é novidade na filmografia de Clint Eastwood: dos matadores implacáveis dos primeiros faroestes ao trágico pistoleiro crepuscular do clássico "Os Imperdoáveis" (1992) - passando por uma galeria de policiais, militares, guarda-costas, treinadores de boxe e outros cascas-grossas quetais -, sempre houve o conflito entre as qualidades e os defeitos desses (anti) heróis em seus filmes. A diferença desta vez é que o protagonista - mocinho ou vilão - não está lutando contra um governo ou um contexto social injustos: Earl Stone não se vitimiza por conta dos reveses que sofreu na vida e sabe que está trabalhando para o tráfico e ganhando dinheiro com isso.

Nick Schenk, roteirista de "A Mula", criou um protagonista cuja humanidade se sobressai acima de seus atos, sejam bons ou condenáveis - a narrativa consegue inclusive esboçar com humor e mesmo leveza os soldados do tráfico, assassinos que são apresentados com traços não apenas perversos. Ironicamente, Earl Stone é comparado um par de vezes por personagens no filme a James Stewart, ator celebrizado como encarnação do norte-americano médio capaz de enfrentar a opressão do governo e do poder econômico com a pureza de sua quixotesca integridade moral e de princípios - imagem construída especialmente pelos filmes edificantes que rodou sob a direção do cineasta Frank Capra. O comentário é inteligente e crítico: superficialmente, Earl Stone pode parecer mesmo um decalque do cidadão indignado que faz uma banana para a insensibilidade de políticos e ricaços - as motivações desse Jimmy Stewart contemporâneo, todavia, são bem pouco nobres.

Há, ainda, a questão da abordagem racial e social de "A Mula": nesse road movie da terceira idade, o protagonista topa em suas viagens, além de muitos mexicanos, com negros e lésbicas. Como em "Gran Torino" (2008) - outro filme de Eastwood também escrito por Schenk -, esses encontros começam com o pé direito e chegam a desfechos de inesperada tolerância, com o protagonista descontruindo seus preconceitos e concepções ultrapassadas. Dentro do plausível, Earl atualiza sua empatia e seu vocabulário com relação à alteridade - reservando sua rabugice divertida, que parece ser do próprio Eastwood, para observações ferinas e precisas a respeito da dependência moderna com relação à internet e do vício nosso em mexer no celular o tempo todo.

Clint Eastwood anunciou que "A Mula" é seu último filme como ator. Tomara que não seja verdade - o ídolo fez essa mesma declaração há uma década, quando do lançamento de "Gran Torino". Seu mais recente longa-metragem é uma prova de seu grande talento como intérprete e realizador, capaz de contar histórias emocionantes e perspicazes dentro da tradição narrativa do cinemão hollywoodiano. Respeitoso com as tradições e republicano como Trump, Eastwood contudo é um artista ciente das demandas contemporâneas e sensível às diferentes realidades que o cercam.

Em uma época na qual a histeria xenófoba pensa que a solução dos problemas do mundo está em erguer muros, um filme sobre traficantes mexicanos nos Estados Unidos que se preocupa mais em abordar a expiação da culpa e a redenção do pecador do que em explorar a violência de bandidos e policiais é uma bem-vinda excepcionalidade - cuja assinatura do mestre Clint Eastwood é garantia de qualidade superior.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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