Curadoria de vida

Por Flavio Paiva

De um tempo para cá, entraram em cena novos curadores. Curadores tradicionais eram aqueles ligados à arte, que são (depois do artista, é claro) o cérebro de uma exposição, por exemplo. A partir de suas escolhas (dentro do acervo de um artista, o que é mais relevante ou ao menos mais relevante para aquele público ou a partir de um determinado ângulo), chega aos olhos e ouvidos das pessoas o "mais importante".

Sempre se conviveu com a figura do curador dentro do ambiente artístico, que, afinal, era um facilitador, fazendo uma seleção no que havia de melhor, no que poderia ou deveria ser apresentado àquele público.

Pois, de alguns anos para cá, a curadoria ampliou significativamente sua atuação, apoiada em tecnologia (Inteligência Artificial, por exemplo). Ela está presente em aplicativos como o Spotify, que, a partir de suas escolhas iniciais, vai apresentando o que você gostaria (ou deve consumir) de ouvir, baseado em seu suposto estado de espírito, gostos, preferências.

Ampliou-se um pouco mais a questão e foi para o mundo da moda (claro, já existem há muitos anos os personal stylists, mas não com uso massivo de tecnologia como hoje em dia), por exemplo. A partir de certos critérios (e eventuais compras anteriores, mas não só), algoritmos e pessoas lhe indicam qual o melhor look para você.

Igualmente, clubes de assinaturas de livros, a partir do uso das mesmas ferramentas. Basicamente IA, algoritmos e suas compras passadas ou gostos indicados em pesquisas rápidas. Além do Big Data, obviamente. A partir disto, e de curadores saem recomendações para sua leitura.

O universo de possibilidades das curadorias vai se estendendo ao infinito. Onde houver escolhas, ele está presente e possível. Até aí, não seria um problema em si. O problema se inicia em uma característica humana, ao menos brasileira: a preferência de grande parte das pessoas de que "alguém" escolha por ela. E isto se aplica a roupas, livros, cervejas, vinhos, música e claro, líderes políticos.

O receio (meu e de um grande número de pesquisadores) é que vá havendo uma acomodação e, pior do que isto, um embotamento no raciocínio, na pesquisa, nas relações entre uma coisa e outra, ou seja: na própria inteligência e autonomia.

Ter alguém escolhendo para você pode parecer confortável em um primeiro momento e até o é, mas até certo nível. A partir dali, é necessário que cada um exercite seu maior talento: a capacidade de refletir, de se interessar.

Enquanto a questão ocorrer no nível da sugestão, algumas dicas, muito bem. Pode enriquecer, trazer novidades, coisas não antes vistas ou notadas. Este nível é perfeito, embora possa trazer alguns erros de sugestão (como já recebi várias indicações que não estavam de acordo com o que sou, gosto ou penso). Mas, como sempre, a questão é a dose. Para que de sugestão não se transforme em invasão, condução. Porque o ser humano, para evitar correr o risco de errar, adora delegar a tarefa da escolha para terceiros, que ficam acertando e errando, ou pior, induzindo (ou não, é claro) e tendo grande parte da população em suas mãos.

O mecanismo por si só é interessante e estimulante. Ampliam-se fronteiras e aumenta enormemente o potencial. O uso que eventualmente podemos deixar que ele faça é que se constitui em risco. É preciso seguir com as rédeas das nossas escolhas.

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