Do coronel Kurtz ao capitão Bolsonaro

Por Marino Boeira

Daqui a alguns anos, quando uma maior distância dos fatos nos permitir examinar com mais isenção os acontecimentos políticos de hoje no Brasil, a figura de Jair Bolsonaro poderá ser vista com toda a sua dimensão de um pobre fanfarrão que, mesmo assim, foi capaz de representar um tipo de comportamento de uma grande parte da população.

Em seu livro Siempre nos quedará Paris (título original), que o Dr. Franklin Cunha trouxe de Buenos Aires e, gentilmente, me emprestou, o filósofo argentino Jose Pablo Feinmann analisa o comportamento humano a partir de uma série de importantes filmes americanos.

Quando trata do filme Apocalypse Now, que Francis Ford Coppola fez em 1979, ele examina as razões que levam o enlouquecido coronel Walter Kurtz (Marlon Brando) a se internar nas selvas do Vietnam, onde reproduz em escala menor, tudo que os soldados norte-americanos - teoricamente ainda não enlouquecidos - praticavam na guerra 'oficial' contra os vietnamitas.

Diz Feinmann que não se pode fazer uma guerra racionalmente e que o filme é importante porque nos mostra a guerra como uma forma de loucura, onde seus participantes acabam assumindo por sua própria loucura que trazem latentes dentro de si e que a guerra, apenas faz aflorar.

Quando o coronel Kurtz se defronta com o capitão Benjamin Willard (Martin Sheen), enviado pelo exército para encontrá-lo e matá-lo, ele diz: "Vocês fazem a guerra igual a mim, em vocês está a barbárie do mesmo jeito que eu a exerço. Sou mais autêntico porque assumo a guerra com toda a atrocidade que a guerra implica".

Mesmo que a violência pregada pelo Bolsonaro, ao contrário do coronel Kurtz, exerça-se num plano mais teórico - afinal, o Brasil ainda não vive numa guerra - ele apenas verbaliza um tipo de proposta com a qual comunga, ainda que não queira confessar isso, uma boa parte da população.

O exército norte-americano realizou uma guerra extremamente selvagem no Vietnam bombardeando populações civis e destruindo a infraestrutura do País, mas seus generais sempre falaram que estavam lutando pela democracia.

O coronel Kurtz fazia o mesmo, sem qualquer tipo de desculpas.

Durante os governos militares no Brasil, os generais presidentes usaram da violência contra a população, mas, raramente, admitiam que a faziam. Ao contrário, diziam que estavam defendendo o País da subversão comunista.

O capitão Bolsonaro pretende usar toda essa violência, mas não esconde essa intenção, a exemplo do coronel enlouquecido do filme do Coppola.

O que nos deve deixar horrorizado é que personagens como Bolsonaro só são possíveis porque as pessoas carregam esse sentimento de violência que ele externa escondido dentro de si e que raramente admitem sua existência.

Bolsonaro funciona como uma catarse coletiva, permitindo que milhões de pessoas - seus eleitores - possam extravasar esses sentimentos menos nobres e continuarem convivendo na sociedade como pessoas aparentemente civilizadas.

Bolsonaro diz o que elas pensam, inclusive, na forma tosca da linguagem que costuma usar, permitindo que elas possam continuar se comportando de uma forma normal em seus relacionamentos.

No filme analisado por Feinmann, o capitão Willard percebe que, ao se aproximar do coronel Kurtz, aproxima-se da loucura que está dentro dele também, porque sabe que "o coração das trevas a que se dirige, é uma viagem ao seu próprio interior, até suas próprias trevas".

Os eleitores do Bolsonaro se recusam a se aproximar das razões que os levaram a esse voto insano, porque sabem que isso os levará, também, a assumir a condição de pessoas violentas e irracionais.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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