Mais um daqueles dias que não deveriam ter existido

Por Márcia Martins

O despertador do relógio toca às 9h, um horário perfeitamente normal uma vez que a consulta médica está marcada para 11h30. Preguiçosa como só eu, deslizo um pouco na cama a fim de aproveitar pelo menos mais uns 15 minutos, antes que o cusco Quincas Fernando Martins resolva perceber que existe vida humana embaixo das cobertas e inaugure o seu processo de agitamento canino matinal a correr de um lado ao outro sobre o quarto. Esses 15 minutos em nada prejudicarão a rotina de bebericar um gole de café passado às pressas, mordiscar uma fruta, ajeitar a casa, ou melhor, dar a famosa 'tapeada', limpar o banheiro do cão, tomar um banho e sair para chegar pontualmente na doutora.

Parece a mais perfeita cena de família feliz de comercial de margarina, certo? Só que não (#sqn). Depois dos 15 minutos roubados de preguiça, enquanto aguardo a água esquentar para o café, decido olhar o maldito Whatsapp (se eu pego o infeliz que inventou este negócio...). Pois a médica avisa que duas pacientes resolveram desmarcar e ela irá me atender, se eu puder, é claro, uma hora mais cedo do agendado, isto é, às 10h30. Desisto, sem pensar duas vezes, do café, da fruta e de arrumar a casa. Faço, apenas na corrida, a limpeza básica do banheiro do Quincas (isto não pode ser adiado) e, é evidente, o banho santo de todo o dia.

Coloco numa sacola os últimos exames de saúde que preciso apresentar na consulta e espero o aplicativo de carro que, normalmente, chega em sete minutos, mas naquela terça que começou errada levou 15 minutos para percorrer quatro quadras ao redor da minha casa. Para não piorar o meu humor, que realmente não estava nos picos mais elevados de contentamento, nem reclamei que o aplicativo demorou e que ele ouvia a Rádio Liberdade (ai, me poupe). Mas na fase do 'menos pior', pensei que era melhor do que escutar sertanejo. Ufa, apesar dos contratempos, consegui comparecer à consulta médica com poucos minutos de atraso, o que é perfeitamente admitido.

Por ser uma doutora que me atende há muitos anos, na especialidade de clínica geral, e me conhecer pelo avesso, continuei sua paciente quando ela se desligou do meu plano de saúde. Logo, é uma consulta que exige pagamento, em dinheiro ou cheque. Ela não aceita cartão. Na corrida para sair, pegar os exames, deixar o apartamento sem as armadilhas para o cão destruir e abastecê-lo de alguns brinquedos suficientes para a sua distração o tempo em que eu ficasse fora, eu simplesmente não lembrei de pegar dinheiro na quantidade necessária para pagá-la e nem mesmo uma folha de cheque (mas isto ainda existe?). Acertei que passaria lá outra hora para honrar o pagamento.

Sei que vocês podem estar pensando que eu sou uma exagerada, que aumento as coisas e que superdimensiono as situações cotidianas, que todos passam por encrencas. Até concedo um certo crédito para vocês porque me considero sim um 'pouquinho' além dos limites, desmedida, hiperbólica. Talvez fosse apenas o começo do dia com pequenos desacertos, incidentes, equívocos. Mas nada assim tão categórico para classificar o dia como catastrófico, irremediável e apocalíptico.

Eis que, no meio da tarde a operadora do seu telefone móvel (coisa mais chique) liga para informar que a conta do mês x do ano passado não foi paga e que se isto não for providenciado eu terei meus serviços interrompidos. Que loucura. Como eu não teria pago e ainda estaria usufruindo até hoje do celular. Mas é melhor não explicar para a atendente de telemarketing com a voz de orgasmo interrompido que focinho de porco não é tomada. Melhor catar em casa nas gavetas o comprovante de pagamento. Porque eu sou extremamente precavida e guardo em envelopes etiquetados as contas quitadas.

Decido que só farei a busca à noite. Porque antes tinha uma reunião de campanha política e no início da noite compareceria à inauguração do Comitê das Mulheres do meu partido. Ao retornar desta agenda partidária, uma enxaqueca daquelas que há muito tempo eu não sentia, anunciou a sua presença. Optei em deixar para vasculhar as gavetas para procurar o comprovante de pagamento na manhã de quarta. A ideia era deixar o remédio fazer efeito para a enxaqueca diminuir e escrever esta coluna ainda na noite de terça-feira. Pois não é que o meu notebook travou e não teve jeito de funcionar.

Nesta manhã de quarta, com os pequenos problemas indo procurar as suas turmas, retomo o que promete ser um dia normal. Pelo menos dentro da rotina aceitável sem muita incomodação e estresse. Ah, fala sério, você ainda está pensando que eu sou exagerada, superlativa, hiperbólica? Juro que não. Cada dia que não precisava ter existido!

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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