Mui leal e valerosa

Por Flávio Dutra

O brasão da capital gaúcha ostenta em destaque os dizeres "Leal e valerosa cidade de Porto Alegre", que muita gente associa a adesão à causa Farroupilha na revolta contra o Império. Ledo engano. Porto Alegre ganhou esse título justamente pela sua fidelidade aos imperiais. A cidade foi invadida em 20 de setembro de 1835, mas, sem apoio da população e sem condições de expandir a guerra a partir da Capital, os farrapos tiveram que abandoná-la em junho de 1836.  Porto Alegre foi sitiada mais três vezes, mas a mui leal e valerosa resistiu ao assédio rebelde, merecendo, por isso, o título concedido pelo Imperador.

Viria daí, dessa resistência à rebeldia, tudo às avessas, uma forma de irredentismo de Porto Alegre, impregnada na sua gente e aculturada com o passar do tempo. Uma esquizofrenia de quem ama sua cidade de forma envergonhada, antes é preciso desqualificá-la, potencializar seus defeitos e minimizar suas virtudes, mas ai do forasteiro que ousar falar mal dela. É um cotidiano feito de rabugices por grandes e pequenas causas, de negações ao novo, de contrariedades ao diferente, embora o porto-alegrense se ache culturalmente evoluído, politicamente esclarecido e receptivo à diversidade, seja ela qual for.

No entanto, parece que o povo age contraditoriamente assim para purgar - ou confirmar? - uma culpa atávica pelo oficialismo e oposição diante do movimento farroupilha. Não há orgulho em ser mui leal e valerosa. A tese é do meu amigo, o jornalista e escritor Gustavo Machado, e sou tentado a concordar com ela.

Mas Porto Alegre, que já foi a Cidade Sorriso, hoje procura uma nova identidade, diferente daquela que lhe impôs o PT em 16 anos de gestão, com apelos ao popular e ao participativo, que só se efetivavam nas instâncias e mecanismos devidamente aparelhados. A cidade tem muitos atributos, mas nada que se sobressaia, e não me venham com o por do sol ou o Laçador, porque não é isso que faz a identidade de uma metrópole. É algo imaterial, maior do que a bela manifestação da natureza ou o portentoso monumento. Houve um tempo em que se tentou o conceito Multicidade, mas não pegou.  A questão, portanto, está em aberto.

Está na hora de deixarmos de ser a Cidade do Mas, a Pequenópolis de alguns, a Caranguejópolis de outros, a Rabugentópolis de todos nós, e voltarmos a ser, quem sabe, a Cidade Sorriso, como preconizou Nilo Ruschel, quando assim a batizou nos seus programas radiofônicos, nos idos do século passado.  E voltar a ser não seria retrocesso, mas avanço.

A verdade é que a minha Porto Alegre, de 247 anos, precisa se redescobrir.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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