O empoderamento da vagina

Antes de mais nada, deixem eu registrar meu nojo por ter de escrever essa palavra. Não, vagina, não. Empoderamento. Vagina tem um tom clínico que não me agrada, mas é melhor que algumas absolutamente ridículas terminadas em eca. Essas palavras terminadas em eca dão a impressão de que lidamos com alguma coisa cômica, um bricabraque pitoresco e fútil. Vagina nenhuma merece isso, começando pela vagina da perereca. Não se pode esquecer o óbvio: a linguagem mostra direitinho nossas emoções e preconceitos.

Empoderamento não tem defesa. Eta palavrinha feia! Acontece muito com palavras enjambradas a partir de outra língua. Por que não se pode respeitar o português traduzindo uma monstruosidade dessas?

Li que "o uso de empoderar é indicado no sentido de conceder poder, seja para si próprio ou para outras pessoas". Como 'conceder poder' a si mesmo? Poder a gente conquista. Ponto. Seria conveniente que certas pessoas empoderassem a capacidade de expressão antes de escrever verbetes.

Mas, vem cá, empoderar não tem o mesmo sentido de fortalecer? 'Se fortalecer' não é 'se tornar poderoso'? Claro, se usarmos a palavra fortalecer perdemos o status de cidadão xerox de Miami. Mas seria ruim a gente assumir a própria língua e levá-la às mais extraordinárias aventuras?

Estou às voltas com a vagina e seu empoderamento devido a uma notícia velha - velha como fato, mas, como repete o padrão de autoritarismo e tolice que domina o Bananão, infelizmente continuará atual vá saber até quando. Falo das palestras dadas numa faculdade de Nova Lima, na região metropolitana de Belo Horizonte. Sim, sim, aquela em que o inefável Dallagnol mandou um recadinho pra Raquel Dodge, a nova PGR: "Ninguém pode mandar dizer o que a gente faz ou deixa de fazer em Curitiba". Nem a Constituição, a gente sabe.

Uma das palestrantes que dividiu as atenções dos mineiros foi Carol Teixeira, colunista da revista VIP. Em postagem no Facebook, ela garantiu que "o empoderamento feminino precisa passar pela vagina". Das duas, uma: ou isso é humor involuntário ou a filósofa buscava duplo sentido como em versos escabrosos de canções popularescas. Mas nenhuma das opções é estranha, já que a filósofa disse que só iria dar a palestra se pudesse 'causar'. Sinais dos tempos que o Bananão vive: até o trabalho de filósofos reduzido ao nível do Jornalismo de fofocas de celebridades.

Atenção, vou pegar um dos sentidos possíveis. Me parece que o empoderamento feminino não fez outra coisa através dos séculos que passar pela vagina. Poucas mulheres tiveram poder e respeito sem o uso do sexo. Lembre-se de Cleópatra e de madame de Pompadour, por exemplo, duas mulheres que são uma espécie de símbolo no ramo. Lembre-se também que Cleópatra e madame de Pompadour foram vistas e retratadas como prostitutas de luxo. Mas há um detalhe convenientemente esquecido: se elas fossem apenas gostosas não teriam sobrevivido na selva das cortes. Sexo, sem inteligência, se aguenta no máximo por uns meses.

Apesar dos muitos romances e inumeráveis poemas que tratam das mulheres, me parece que só nos últimos tempos, se não comi mosca, começou uma mudança no mundo aqui fora: a luta pra que os homens (e algumas mulheres) reconhecessem que as mulheres são também o que há ao redor da vagina. Não, não falo dos quadris. Sejamos brutalmente diretos: ao redor da vagina há uma pessoa, que tem sentimentos e um cérebro. A vida é ou não é surpreendente?

O segundo sentido: Carol Teixeira acha que as mulheres têm de ter a sexualidade reconhecida, não demonizada. Só que disse isso de um jeito tão torto que pode ser mal interpretado, sem falar no prato feito pra chacota. Uma frase dessas pode "causar", mas perde em clareza e pede pra não se levar a autora a sério.

Carol Teixeira diz que "precisamos compreender essa força que reside na vagina". Isso não foi compreendido desde sempre? Não precisa simplificar muito pra ver a campanha masculina que garante que as mulheres são seres inferiores como uma defesa desesperada. Está tudo na Bíblia, com a assinatura de Deus, que, não por nada, tem a pinta de um velho patriarca da UDN. Senão, me explique por que a única mulher levada a sério, a mãe de Jesus, concebeu sem pecado, isto é, sem fuque-fuque, com uma polinização feita por anjos no papel das abelhas?

Os homens se mijam de medo das mulheres - e um dos motivos é porque sabem que a submissão total, que os deixaria calminhos e com uma sensação refrescante de superioridade, não existe nem no harém do paxá. Se mijam de medo que as mulheres descubram e revelem ao mundo que eles são uns frouxos e muitas vezes broxas. Se mijam de medo do uso que as mulheres podem fazer da vagina quando eles não estão presentes. Os homens se mijam de medo de que as mulheres possam ser mais sensatas e mais inteligentes. Até o fato de as mulheres serem mais sensíveis é visto como um incômodo por muito marmanjo, quando não uma ameaça ou até uma ofensa, ou a sensibilidade não é taxada de frescura?

Chega de discurso, vamos voltar à Carol Teixeira: "Precisamos de uma reforma sexual, do empoderamento que vem de orgasmos verdadeiros e respeito profundo pela vagina, começando pelo entendimento e respeito pela nossa".

Tudo bem, embora eu não saiba o que seja um orgasmo que não é verdadeiro. Se é fingido, não é orgasmo. Se o dito-cujo aconteceu, mesmo que tenha sido com a ajuda de um vibrador, é real, não? No máximo pode-se discutir a intensidade.

Quanto ao respeito profundo pela vagina, concordo plenamente. O problema é que de novo Carol Teixeira abre a guarda pra piadinhas infames.

Mas, cá pra nós, tanta ênfase na sexualidade não limita um pouco o feminismo? Não seria interessante outros empoderamentos? Digamos - pra não ir mais longe, já que vivemos no Bananão -, o empoderamento do estômago feminino. Acho que precisamos, entre tantas outras, de uma reforma alimentar no Bananão. Precisamos do empoderamento que vem de refeições verdadeiras e respeito profundo pelo estômago. Porque se o da Carol Teixeira não têm do que reclamar, fora dos preços abusivos, os estômagos de milhões de bananenses não só não têm um trato direto com comida de qualidade e em quantidade aceitável como têm medo de bala perdida.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

Comentários