O tempo do cronista

Por Flávio Dutra

A grande angústia do cronista não é a falta de assuntos ou inspiração.  Assuntos é que não faltam nestes tempos de ampla comunicação, ainda mais no Brasil da era bolsonariana. O assunto puxa a inspiração e o cronista sazonal está salvo. Ledo engano! O que atormenta mesmo o escriba do cotidiano é o tempo. Explico: o tempo de permanência como interesse do assunto focado.

A ideia para esta crônica - que, espero, tenha durabilidade - surgiu justamente numa conversa no calçadão de Ipanema com o consagrado cronista Nilson Souza, eventual companheiro de caminhadas, quando ele expressou enorme preocupação com sua crônica semanal para a ZH. O texto já estava pronto, mas só seria publicado dois dias depois, uma eternidade de tempo para um cronista sensível e atento às ofertas de assuntos que clamam por uma crônica.  Perfeccionista como poucos, ele se consome em angustia até o dia da publicação, sem se dar conta de que no final das contas o texto é irretocável e causador de santa inveja dos escribas menos apetrechados de talento, entre os quais me incluo.

Essa angustia está presente também, certamente em grau superior, nas editorias do jornalismo impresso que precisam adiantar material. Vale conferir o relato do editor-chefe de ZH, Carlos  Etchichury, em recente Carta do Editor, dando conta  do desafio que representa escolher a manchete e a foto de capa  da edição do fim de semana, diante da grande oferta de noticias e reportagens de  fôlego. E exemplificou com os preparativos para a edição de 9 e 10 de fevereiro, que começaram, como sempre,  no meio da semana para serem finalizados na sexta-feira. Estava tudo bem encaminhado quando ocorreu a  tragédia no Ninho do Urubu, que vitimou 10 jovens promessas do Flamengo e obrigou a mudança rápida de planos para redesenhar a edição.  Etchichuty conclui que é preciso muita ação para derrubar tudo o que estava planejado, se as noticias que não tem  hora para acontecer, se impuserem. É bem isso e por certo vai acontecer  mais vezes neste 2019 de muitas tragédias.

Claro que a atualização do noticiário se impõe mais do que a eventual revisão de uma crônica de temas ligeiros. Entretanto, de quem escreve compromissado com espaço fixo de opinião, como aqui no Coletiva.net ou  na mídia tradicional, exige-se disciplina e método, além da atenção permanente do que ocorre fora da bolha em que vivemos, o que já se configura como exercícios de disciplina e método. No meu caso, a crônica normalmente está pronta na sexta-feira, mas, como bom capricorniano, fico lapidando até domingo pela manhã, quando faço a última revisão e envio para a Márcia e a Gabriela, ainda sestroso com o que possa acontecer até a publicação, quase como um Nilson Souza. Quando me aperto, revisito velhos temas e, sem constrangimento, lanço mão de crônicas ou abordagens já publicadas no blog viadutras.blogspot.com. Não tem erro, porque a outra opção seria escrever abobrinhas.  O que não dá é para ficar esperando a inspiração chegar.

A propósito, a melhor abordagem que li sobre essa questão foi no artigo Os cinco maiores mitos  que impedem você de escrever, de  Juliana Moro, que é engenheira mecânica, mas dá uma verdadeira aula para cronistas efetivos ou bissextos. O quarto mito é o que trata da "perfeição infinita", que reproduzo em parte: "A introdução não está interessante, o título não chama atenção, o artigo está muito longo, a imagem não combina, o storytelling está artificial, a gramática não colabora e por aí vai. Para os que se apegam aos mínimos detalhes, parece que sempre falta alguma coisa e o texto nunca é publicável. (...)Ninguém nasceu sabendo escrever e mesmo os grandes autores concordam que o seu último trabalho está bem melhor que o primeiro. Então não tenha medo de errar. A escrita é isso, dar uma chance, começar, desenvolver e colocar um ponto final. Não ficou bom? Apaga, reescreve e tenta de novo. Ser perfeccionista não ajuda em nada neste processo."

Acho que vou assinar embaixo e pedir condescendência com os cronistas em geral quando um texto parecer defasado, mesmo que se reporte a um acontecimento de 24 ou 48 horas atrás.

Autor
Flávio Dutra, porto-alegrense desde 1950, é formado em Comunicação Social pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), com especialização em Jornalismo Empresarial e Comunicação Digital. Em mais de 40 anos de carreira, atuou nos principais jornais e veículos eletrônicos do Rio Grande do Sul e em campanhas políticas. Coordenou coberturas jornalísticas nacionais e internacionais, especialmente na área esportiva, da qual participou por mais de 25 anos. Presidiu a Fundação Cultural Piratini (TVE e FM Cultura), foi secretário de Comunicação do Governo do Estado e da Prefeitura de Porto Alegre, superintendente de Comunicação e Cultura da Assembleia Legislativa do RS e assessor no Senado. Autor dos livros 'Crônicas da Mesa ao Lado', 'A Maldição de Eros e outras histórias', 'Quando eu Fiz 69' e 'Agora Já Posso Revelar', integrou a coletânea 'DezMiolados' e 'Todos Por Um' e foi coautor com Indaiá Dillenburg de 'Dueto - a dois é sempre melhor', de 'Confraria 1523 - uma história de parceria e bom humor' e de 'G.E.Tupi - sonhos de guri e outras histórias de Petrópolis'. E-mail para contato: [email protected]

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