‘Vida real’

      Expressões como "precisamos pensar no leitor" ou "temos de publicar coisas que tenham a ver com a vida real das pessoas" (a redundância não …

      Expressões como "precisamos pensar no leitor" ou "temos de publicar coisas que tenham a ver com a vida real das pessoas" (a redundância não é minha) viraram modismo nas redações. Uma geração de jornalistas, a minha, por sinal, julga ter descoberto a pólvora. Tempos houve em que o leitor era, de fato, o que menos interessava na hora de criar pautas fantasiosas, inventar personagens de romance policial ou dar manchete a fatos exóticos ocorridos em terras distantes sem dizer exatamente no que tal assunto poderia interessar ao cidadão que comprava o jornal (o raciocínio serve para TV, rádio, internet e, como diz a lei dos direitos autorais, para qualquer meio existente ou que venha a ser inventado).
      Os bons jornalistas da era profissional da mídia sempre observaram tais regras. De repente, alguns começaram a discursar como se só eles se preocupassem com o leitor, ou só eles entendessem que as notícias devem ter relação com o dia-a-dia do público. O resultado dessa ânsia em parecer iluminado leva a alguns disparates. É como passar a publicar em cadernos de turismo apenas reportagens sobre praias de água doce a quinze minutos de distância, de ônibus, é claro, e um serviço completo com o preço do cachorro-quente, com as variantes lingüiça e duas salsichas, porque é a isso que a maioria do povo tem acesso. Nada de Cancún, Aruba, Paris ou Barcelona, afinal, isso nada tem a ver com a vida da maioria das pessoas.
      Pelo mesmo critério, os cadernos de veículos deveriam estampar na capa aquilo que o leitor tem na garagem, apenas carros pequenos e usados, que é o que a maioria da população pode comprar, quando pode, com dicas para remendar motores com pedaços de arame, ou então realizar test-drive de ônibus. Seguindo tal raciocínio, revistas como a Playboy deveriam parar de colocar na capa aquelas mulheres lindas e gostosas e passar a estampar ali fotos de mulheres como as que alguns editores têm em casa.
      O problema de exagerar na dose de "vida real" é que isto só funciona em questões objetivas. A queda das bolsas na Ásia pode, sim, ter feitos importantes em nossas vidas, e é saudável explicar isso. A crise argentina ou os atentados nos EUA igualmente nos afetam, e veículos competentes não apenas noticiam o fato, mas dizem qual nossa relação com ele. Quando se trata de coisas como viagens, carros e mulheres, não é bem assim, pois estamos falando também de sonhos. Algo em torno de 99,99% da população mundial jamais poderá comprar uma Ferrari, e no entanto revistas, fotos, pôsteres, camisetas e qualquer objeto com a imagem de uma Ferrari vende feito água. É humano sonhar com carrões, viagens a lugares paradisíacos e mulheres fabulosas. Ninguém gosta de se imaginar indo de Chevette ao Lami acompanhado de uma mocréia. Mesmo que tenha de fazê-lo na "vida real".
Dedicado a Gilberto Leal
( [email protected])

Autor
 Eliziário Goulart Rocha é jornalista e escritor, autor dos romances Silêncio no Bordel de Tia Chininha, Dona Deusa e seus Arredores Escandalosos e da ficção juvenil Eliakan e a Desordem dos Sete Mundos.

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