A arte de não-existir

Por José Antônio Moraes de Oliveira

Agosto de 1660. Morre Diego Velázquez, um dos grandes do barroco espanhol e gênio da pintura universal. Comovido pela perda de seu pintor predileto, o rei Felipe IV ordena um funeral solene com sepultamento na Igreja Real de San Juan Bautista. Pouco tempo antes, o rei lhe concedera outra rara honraria, o título de Cavaleiro da Ordem de Santiago, para o que precisou pedir permissão especial ao papa Alexandre VII.

E como Velázquez agradece o gesto real? Com um auto-retrato em "Las Meninas", ostentando a cruz do Padroeiro da Espanha no peito.

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Por estes e outros tantos títulos, Diego Rodríguez de Silva y Velázquez foi um artista extraordinário. Alguns grandes souberam capturar em suas telas os efeitos visuais do Chiaroscuro: Vermeer, Rembrandt, Caravaggio. No entanto, Velázquez foi mais longe, pintando o que está entre a luz e   a sombra, aquilo que o crítico Frank Wan disse ser -

"A fotografia do ar que nos cerca".

 E cita como exemplo como Velásquez reescreveu - ou rompeu - as leis  da pintura em uma das grandes telas da Espanha - Las Meninas. O quadro, de 1657, foi encomendado para ser um retrato da família real, mas o pintor o transformou em uma complexa combinação de perspectivas e dimensões nunca percebidas dentro de uma única pintura.

No início, a tela parece caber em duas dimensões - ao fundo, o rei e a rainha, Felipe IV e Mariana da Áustria, refletidos em um espelho. O pintor se posta à esquerda, de frente para o espectador. Está em pé, diante de uma grande tela, com pincel e paleta, em pleno ato de pintar.

A partir daí, Velazquez inicia um jogo de perspectivas - a tela que ele  está pintando à sua frente é a mesma que o espectador vê diante de si. Ou seja, a cena que mostra a infanta Margarida iluminada, olhando de lado para o espectador. E ao lado dela, as meninas Isabel Velasco e Agustina Sarmiento, mais uma anã macrocéfala, que encara desafiante   a quem olha o quadro. A seus pés, um mastim olha para baixo - segundo os espanhóis, cães não olham para espelhos.

Assim, podemos dizer que a cena que o espectador vê, está na tela que Velazquez está pintando. Mas - aonde estão posicionados o rei e a rainha, cujas figuras aparecem refletidas ao fundo? Eles estão na posição do espectador que olha para a tela? Ou em outra perspectiva, é para eles que a Infanta ( e a anã ) estão olhando?

Mais um enigma velazquiano - no retângulo iluminado ao fundo, um cavalheiro, identificado como Don José Nieto abriu (ou vai fechar?) uma porta que dá para a mundo exterior. Mas se a porta se abre para a luz externa, de onde vem a luz que banha as meninas?

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Estudiosos tentaram respostas aos enigmas deste quadro único. Ortega y Gasset disse que o claro-e-escuro na obra de Velásquez representa a luz e a sombra na vida do pintor. E pergunta como, mesmo pintando os poderosos de seu tempo com desconcertante sarcasmo, ele soube manter     a amizade de Felipe IV até o fim da vida. Sua resposta:

"Velazquez pintou a Verdade que as pessoas

de seu tempo não queriam ver.

Foi um homem que praticava a arte de não existir".

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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