A vida como ela foi

José Antônio Moraes de Oliveira

"Mas as coisas findas, muito 

mais que lindas, estas ficarão."

Carlos Drummond de Andrade.

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Certa vez, o poeta Mário Quintana, sentado em um banco da Praça da Alfândega, ao ver pessoas na fila da banca da esquina esperando para comprar o jornal do dia, teria dito algo assim:

"Um poeta de verdade não lê os outros poetas.

Ele lê os pequenos anúncios nos jornais."

 

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Já não mais existem pilhas de jornais nas bancas à espera de leitores ávidos por notícias e novidades. Também sumiram os grossos cadernos de pequenos anúncios nos jornais dominicais. Nos pequenos anúncios havia de tudo, de procura-se cozinheira, a uma oração por uma graça alcançada e alguns recados pessoais do tipo Eurico, mande notícias. Mas aqui e ali, líamos mensagens que eram comoventes retalhos de dramas cotidianos:

"Vende-se triciclo" ou "Aluga-se vestido de noiva".

Outras vezes, aconteciam poesia em estado puro, como um caso clássico que Ernest Hemingway garimpou ao acaso e que soube transformar em obra-prima do miniconto:

 

"Vende-se: sapatinhos de bebê nunca usados."

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Houve um tempo em que frases de ocasião e ditos populares eram fonte de inspiração para poetas e escritores. Um mestre desta prática foi o jornalista Nelson Rodrigues que colecionava diálogos ouvidos em ônibus e nas esquinas de bairros para suas crônicas do cotidiano, que ele rotulava como "A vida como ela é". 

Um outro pernambucano, o poeta Manuel Bandeira, reproduzia em poemas as falas e provérbios que ouvira 40 anos antes na Recife dos antigos casarões senhoriais. Estas e outras alquimias faziam com que nossas infâncias e adolescências continuassem vivas, em versos ou prosa tocados pela magia da criação literária. 

O francês Marcel Proust, ao celebrar suas icônicas madeleines, nos diz que verdadeiros tesouros são os que guardamos nos cofres da memória. Algo similar deve ter ocorrido com Carlos Drummond ao relembrar sua Itabira ou com Érico Veríssimo e seu pungente solo da clarineta.

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Por sua vez, em Portugal, o heterônimo Alvaro de Campos se lamentava quando acometido por deslembranças:

 

"Porque esqueci quem fui?

Porque deslembrei quem então era eu?"

Mas, ao tomar consciência de que foi feliz sem o saber, sai em busca do que julgava perdido:

 

"Fiz de mim o que não soube.

E o que poderia fazer de mim, não o fiz."

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A cada momento, mesmo sem ser provocada, a lembrança do ontem persevera. Como bem advertia Jorge Luis Borges, mesmo quando tentamos reinventar coisas passadas, elas continuam a ser as mesmas que foram. No dia de hoje ou amanhã, um gesto ao acaso, uma frase solta ou um rosto entre anônimos disparara o caleidoscópio da memória. Alguém disse que o esquecimento é tentativa vã de blindar velhos sofrimentos. O risco é que pode nos isolar de preciosidades esquecidas no misterioso baú da memória.

 

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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