Cala Boca!

Por Fernando Puhlmann

17/11/2025 18:09 / Atualizado em 17/11/2025 18:07
Cala Boca!

?Quando o Estado desconfia primeiro da vítima,

ele se torna cúmplice do agressor.?

Djamila Ribeiro

Há momentos na história em que avanços civilizatórios, conquistados com dor, luta e coragem, parecem ser tratados como descartáveis. O projeto de lei apresentado pela deputada federal Julia Zanatta, que propõe punir com rigor mulheres que fizerem acusações ?falsas? de violência doméstica, é exatamente isso: um retrocesso travestido de modernização jurídica. É um perigo real para todas as vítimas de agressão, especialmente as psicológicas, as silenciosas, as que não deixam marcas na pele, mas deixam cicatrizes profundas na vida.

A pergunta central é simples e devastadora: como exigir que uma mulher denuncie seu agressor se, antes mesmo de ser ouvida, já paira sobre ela a ameaça de virar ré, caso não consiga ?provar? o que sofreu?

Provar o quê? Como? De que maneira uma mulher que vive violência psicológica, manipulação, humilhação, ameaças veladas, chantagem emocional, vigilância constante, consegue transformar sua dor em evidência jurídica? Como responsabilizá-la criminalmente por não conseguir documentar aquilo que aconteceu entre quatro paredes, muitas vezes durante anos, sob medo, isolamento e controle?

Isso não é proteger ninguém. Isso é calar.

Esse tipo de proposta inverte o ônus, o sentido e a alma da Lei Maria da Penha, considerada mundialmente uma das legislações mais avançadas de combate à violência doméstica. Ela existe justamente porque o Estado reconhece que a mulher, em situação de violência, é a parte vulnerável ? social, psicológica e economicamente. Transformar essa mulher em potencial criminosa é desmontar a lógica da proteção e reinstalar o velho paradigma da suspeita, aquele que dizia: ?tem certeza? ?, ?não exagera?, ?deve ter provocado?, ?não deve ser tão grave assim?.

É o retorno à era em que a mulher pensava mil vezes antes de pedir ajuda. É institucionalizar o medo.

E não, não se trata de defender denúncias levianas. O ordenamento jurídico já prevê punições para isso. O que está em jogo não é a lei, mas a mensagem. Ao dar destaque e prioridade ao risco de falsas denúncias (que estudos sérios apontam ser minoritárias) o Estado passa a insinuar que o problema está nas mulheres, não nos agressores.

A consequência?

Muitas vítimas deixarão de denunciar. Outras tentarão, mas desistirão no meio do caminho. E várias continuarão vivendo em silêncio, acreditando que o risco de serem desacreditadas é maior do que o risco de continuarem sendo agredidas.

A violência doméstica no Brasil não precisa de mais obstáculos. Precisa de acolhimento, estrutura, políticas públicas, formação profissional, sistema que funcione. A proposta apresentada vai na direção contrária: desestimula denúncias, enfraquece a confiança no Estado e reforça o ciclo de abuso.

Transformar vítimas em possíveis rés não é justiça. É crueldade institucionalizada.

E, principalmente, é uma ordem traumática ouvida por muitas vítimas: Cala Boca!